terça-feira, 14 de agosto de 2007

Nelson Loureiro dos Santos* - Juizados Especiais Federais Cíveis: Incompetência por Complexidade Probatória



Juizados Especiais Federais Cíveis: Incompetência por Complexidade Probatória


*Juiz Federal Titular da 7ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão - Coordenador do Juizado Especial Federal do Maranhão

INTRODUÇÃO

Dentre as críticas, justas e injustas, tecidas contra o Poder Judiciário, uma das principais volta-se à cantada e decantada morosidade na solução dos litígios.

No dizer de Joel Dias Figueira Jr. “É propriamente nos fatores tempo x rapidez que o jurisdicionado defronta-se com o maior obstáculo à consecução de suas pretensões, porquanto é esse talvez o principal ponto de estrangulamento do Poder Judiciário brasileiro (seja em âmbito federal ou estadual).” [1]

Lamentavelmente, de fato existe muita demora na distribuição da justiça, chegando, no mais das vezes, às raias do insuportável, o que causa dissabores e prejuízos aos jurisdicionados. Afinal, há muito já dizia Rui Barbosa que justiça tardia não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta.[2]

Para consignar sua preocupação com o fato, recentemente o legislador da denominada Reforma do Judiciário, Emenda Constitucional n. 45, acrescentou expressa norma programática indicando ser direito dos cidadãos a razoável duração dos processos judiciais e os meios que garantam a celeridade da tramitação (inciso LXXVIII do art. 5º).

No campo prático, com o objetivo de minimizar os efeitos deletérios da enorme demora na tramitação processual, além de facilitar o acesso a todos os cidadãos, a partir do início da década de oitenta do século passado observa-se movimento que deságua na criação e instalação dos chamados Tribunais de Pequenas Causas, os quais, através de procedimento próprio, simplificado e ágil, procuravam solucionar os litígios em espaço de tempo considerado razoável, muito mais reduzido que aquele dos feitos em curso nas varas ordinárias.

Pode-se notar, na citada evolução procedimental, verdadeira mudança de paradigmas que vem ocorrendo no campo do Direito em geral - e do Direito Administrativo, em particular -, como explicitado por João Batista Gomes Moreira, que aduz, adequadamente ao assunto aqui tratado, que “Para dar curso às novas tendências é preciso desobstruir canais, superar obstáculos e afastar preconceitos”.[3]

Promulgada a Constituição Federal vigente, que previu expressamente a existência dos Juizados Especiais em seu artigo 98, por evolução legislativa que homenageia aqueles atributos listados pelo Administrativista antes referido, adveio em 1995 a Lei 9.099 para tratar especificamente do funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça dos Estados federados.

Para atingir a necessária rapidez processual na tramitação dos feitos ingressados nos Juizados Especiais, que devem, no dizer do constituinte, seguir rito oral e sumaríssimo na apreciação de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, o legislador ordinário estabeleceu como critérios orientadores a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, conforme art. 2º da Lei de 1995.

Inaugurada, portanto, nova modalidade de distribuição de justiça. Revolucionária em seus termos, sem apegos desnecessários às formalidades sedimentadas e defendidas pela processualística tradicional, valoriza ao extremo o princípio da instrumentalidade das formas como trilho seguro na superação do mal resultante do retardamento nas respostas aos anseios dos jurisdicionados.

Os meios para alcance desse nobre fim, é bom que se repita, encontram-se nos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade e economia processual, todos direcionados ao julgamento célere das causas de menor complexidade.

INSTITUIÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAIS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL

A idéia dos Juizados Especiais no seio da Justiça Estadual foi devidamente sedimentada ao longo do tempo, consolidando sua prática, com amplo sucesso, em todas as sedes de comarcas.

No entanto, ressentia-se, no âmbito da Justiça Federal, de modalidade procedimental que pudesse trazer agilidade à tramitação processual, olhos postos naqueles critérios orientadores já lembrados, quais sejam, oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, com especial destaque à conciliação entre os litigantes.

Além de outros aspectos, o fato de a maioria dos litígios que tramitam na Justiça Federal sempre e necessariamente conterem órgão público federal em um dos pólos, o que acarretava grande dificuldade na superação do vetusto entendimento de que estando em jogo interesses públicos não seria admissível a possibilidade transacional – uma das vigas mestras dos Juizados Especiais -, aliado ao visível desinteresse do Governo Federal na rápida solução das demandas em que figure como réu – lembrando, uma vez mais, que a rapidez na solução dos litígios é o objetivo maior dos Juizados Especiais -, sempre consistiram obstáculos importantes a impedir a extensão dessa inovadora modalidade procedimental à Justiça Federal.

No entanto, pressões sociais diversas, especialmente advindas dos próprios juizes federais, por seus Tribunais e Associações de classe, sequiosos de expandir aos seus jurisdicionados os benefícios verificados nas experiências estaduais, finalmente convenceram-se as instâncias do Executivo e do Legislativo federais, propiciando o suporte legal para final instalação e funcionamento dos Juizados Especiais Federais.

Assim que, pela Emenda Constitucional n. 22, de 18/03/99, foi acrescentado parágrafo único (renumerado pela Emenda Constitucional n. 45/04) ao art. 98 da Carta Magna, determinando que “Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal”.

Dando cumprimento à determinação constitucional, foi editada, em 12 de julho de 2001, a Lei 10.259, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, regulamentando seu funcionamento. Já no art. 1º dessa Lei ficou consignado que são aplicáveis no âmbito federal as regras não conflitantes previstas na regulamentação de funcionamento dos Juizados Estaduais e contidas na Lei 9.099/95.

COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CÍVEIS

Antes de tudo, atento que ao interpretar a Constituição não “se deve partir do pressuposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica”[4], necessário lembrar, sem medo de cometer erro, que a lei federal referida no parágrafo do art. 98 da Constituição Federal deve submissão aos termos do caput desse mesmo artigo, segundo o qual os juizados especiais criados serão competentes para a conciliação, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade.

Afinal, conforme regra assentada de hermenêutica, o conteúdo de parágrafo submete-se integralmente à cabeça do artigo ao qual vinculado, configurando-se, inclusive, regra expressa a ser observada na elaboração de leis (art. 11, III, c, da Lei Complementar 95/98, que determina “expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”).

Assim, a Lei 10.259/01, excepcionando algumas matérias em seu § 1º, dispôs no art. 3º que “Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças”.

Seria de perquirir, então, se o legislador ordinário, não se referindo expressamente à restrição da competência às causas de menor complexidade, realmente desejou reduzir esse conceito (causas de menor complexidade), conforme previsto na Constituição, àquelas cujo conteúdo econômico correspondesse ao valor de sessenta salários mínimos.

Além da impossibilidade técnica dessa equiparação em razão da incompatível vinculação do conceito de simplicidade a fator meramente econômico, a interpretação sistemática da legislação aplicável leva à conclusão de que o legislador ordinário, contrariamente ao questionamento anterior, não se utilizou do critério de equiparação ventilado, respeitando, por conseguinte, a norma constitucional vinculante.

Com efeito, a legislação ordinária, tanto a Lei 10.259/01 quanto a Lei 9.099/95, aplicável no âmbito dos Juizados Especiais Federais por força do art. 1º da norma específica, afastam do âmbito de competência da justiça especializada, como o fez o constituinte, as causas complexas.

CAUSAS COMPLEXAS – ALCANCE DA EXPRESSÃO

Não resta nenhuma dúvida que a definição do que seja ou não complexo insere-se no campo subjetivo de avaliação do sujeito que examina o caso. Assunto complexo para um poderá não sê-lo para outro, e vice-versa.

Só que, tendo o constituinte alçado tal condição como fator determinante do limite de competência dos Juizados Especiais, obviamente que se há de buscar, na legislação aplicável, critérios, os mais objetivos possíveis, para a delimitação.

Nesse norte, respeitado o rol de demandas expressamente excepcionadas pelo legislador ordinário, evidente que a complexidade das causas não pode ser jurídica, no sentido de dificultosa aplicação do conjunto de normas a que se subsume o caso concreto, mas, isto sim, reduz-se o rol à complexidade probatória, justamente por ser esta a que compromete definitivamente o andamento expedito dos feitos na sede especial.

E no contexto da complexidade probatória, como único elemento objetivo de distinção, já que, tal como na complexidade jurídica, não se vê, por exemplo, ato complexo na colheita de depoimentos (até porque o critério da oralidade é um dos que impera no subsistema tratado), resta-nos concluir pelas demandas que exigem produção de prova pericial, como previsto nos arts. 420 e seguintes do Código de Processo Civil.

JUIZADOS ESPECIAIS – INCOMPATIBILIDADE COM A REALIZAÇÃO DE PERÍCIAS TÉCNICAS COMPLEXAS

No particular, dispõe a Lei 10.259/01 que “Para efetuar o exame técnico necessário à conciliação ou ao julgamento da causa, o Juiz nomeará pessoa habilitada, que apresentará o laudo até cinco dias antes da audiência, independentemente de intimação das partes” (art. 12). Como se nota, admite-se nos Juizados Especiais Federais a realização de exame técnico para solução da controvérsia.

Vê-se claramente, no entanto, pela própria redação do dispositivo, que não se trata da tradicional prova técnica pericial prevista no Código de Processo Civil, dado que vinculado diretamente, tal exame, ao critério da simplicidade.

De seu lado, a Lei 9.099/95, também aplicável aos Juizados Especiais Federais por força do art. 1º da Lei 10.259/01, é mais incisiva ainda quanto à impossibilidade de nomeação de perito nos moldes do Estatuto Processual, ao prever em seu art. 35 que quando a prova dos fatos articulados exigir, o juiz, em audiência, poderá inquirir técnico de sua confiança para solução da matéria, resolvendo-se a dúvida, portanto, além da simplicidade, pelo critério da oralidade.

Ainda para comprovar definitivamente a impossibilidade de realização de trabalho pericial complexo em sede de Juizado Especial Federal, basta verificar que o § 1º do já referido art. 12 da Lei 10.259/01, determina que os honorários do profissional nomeado para realizar o exame técnico necessário serão antecipados à conta de verba orçamentária do Poder Judiciário, futuramente ressarcida pela entidade pública que afinal venha perder a demanda. Na fixação desses honorários, restringe-se o magistrado aos valores estipulados pelo Conselho da Justiça Federal em resolução, atualmente a de n. 440, importando o limite máximo da Tabela em pouco mais de meio salário-mínimo.

Como se nota, não fosse a incompatibilidade jurídica, operacionalmente também não é possível a designação de trabalho pericial como previsto no Código de Processo Civil, em sede de Juizados Especiais, dado que, não bastante a impossibilidade de chamamento do responsável pela prova para adiantar o valor da verba honorária (art. 19 do CPC), evidentemente que profissional qualificado para a realização de trabalho complexo, no geral com alta demanda de horas de trabalho, não se sujeitará aos valores fixados no âmbito dos Juizados Especiais Federais, previstos, justamente, para remunerar o exame técnico de menor complexidade, este sim cabível na sede especial.

Assim, como exemplo de incompetência dos Juizados Especiais Federais, pode-se citar as causas que envolvem litígios tratando de financiamentos habitacionais, tanto quanto à revisão contratual, que exigem cálculos e projeções financeiras de todo o período de amortizações, como também as referentes à responsabilização de terceiros por defeitos de construção, cuja solução depende de levantamentos técnicos de engenharia para verificação das reais condições do imóvel.

CRITÉRIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS – MAIS OBSTÁCULOS

Por fim, a corroborar a incompatibilidade procedimental das realizações periciais complexas com o rito procedimental dos Juizados Especiais, importante lembrar que as nuances previstas no Código de Processo Civil não se ajustam, em definitivo, aos critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.

Realmente. Além do problema relativo ao valor dos honorários periciais, já lembrado anteriormente, tem-se como incompatíveis com rito expedito os seguintes pontos: nomeação do perito pelo juiz e fixação de prazo para entrega do laudo, intimação das partes para indicação de assistentes técnicos e apresentação de quesitos (art. 421); incidentes de escusa, impedimento ou suspeição, com conseqüente substituição (art. 423); apresentação de quesitos suplementares com intimação da parte contrária (art. 425); intimação das partes quanto à data e local indicados pelo perito para realização da prova (art. 431-A); possibilidade de prorrogação do prazo para entrega do laudo (art. 432); intimação das partes da entrega do laudo em cartório pelo perito, para início da contagem do prazo de apresentação dos laudos divergentes dos assistentes técnicos (art. 433 e parágrafo único); envio dos autos para exame de órgão externo (art. 434).

Nota-se, então, pelas próprias exigências procedimentais inerentes aos trabalhos de exames técnicos previstos no Código de Processo Civil, que designações de perícias complexas no âmbito dos Juizados Especiais, em contrariedade aos termos das normas aplicáveis, inclusive da própria Constituição Federal, significam, em última análise, a ordinarização da sede especial, com conseqüente contaminação de seus salutares princípios de funcionamento, ocasionando, sem nenhuma dúvida, o soterramento da idéia inicial de superação da morosidade no andamento dos feitos ajuizados.

CONCLUSÕES

Como conclusões das explanações aqui trazidas, apresentam-se:

1) os Juizados Especiais configuram-se modalidade jurisdicional que vieram ao mundo predestinadas a superar a mazela da morosidade;

2) para atingimento de seus objetivos, necessária observância aos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade;

3) refoge à competência dos Juizados Especiais, como previsto pelo constituinte, as causa de maior complexidade;

4) não obstante subjetivo o conceito, pela interpretação sistemática do ordenamento aplicável, são consideradas complexas as causas que exijam realização de perícias técnicas nos padrões procedimentais previstos no Código de Processo Civil;

5) embora o legislador ordinário tenha especificado expressamente na Lei 10.259/01 que a competência dos Juizados Especiais Federais é definida pelo critério econômico (causas de até 60 salários-mínimos), dos termos dessa mesma Lei, como também da Lei 9.099/95, dessume-se que não se inserem em tal competência, mesmo que economicamente situadas em seus limites, as causas que exijam dilação probatória complexa, especialmente perícias técnicas não direcionadas pelos critérios da oralidade e simplicidade;

6) somente essa interpretação da Lei 10.259/01 encontra eco no mandamento constitucional do art. 98, onde claramente dito que a competência dos Juizados Especiais cinge-se às causas de menor complexidade, jamais restritas a critérios meramente econômicos, aferíveis singelamente pelo valor dado à causa;

7) admitir-se a realização de provas periciais complexas no âmbito dos Juizados Especiais Federais, em contrariedade às previsões das Leis e Constituição vigente, significa equiparar a sede especial à ordinária, ameaçando em definitivo a sobrevivência de uma das grandes e arrojadas criações humanas no campo jurisdicional, nascida com objetivo nobre.


[1] Figueira Jr., Joel Dias. Liminares nas Ações Possessórias, 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 91/92.
[2] Barbosa, Rui. Oração aos Moços, 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 40. Disponível em http://www.casaruibarbosa.gov.br/, consulta em 18/07/2006.
[3] Moreira, João Batista Gomes. Direito Administrativo. Da Rigidez Autoritária à Flexibilização Democrática. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p. 16.
[4] Barroso, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998. p. 123.








Um comentário:

RUBEM FILHO disse...

No Estado do Maranhão, ninguém se encontra melhor habilitado a tratar do tem em debate do que o Juiz Federal Nelson Loureiro dos Santos, titular do Juizado Especial Federal e seu coordenador. Assim, este espaço fica assaz agradecido com tão distinta contribuição.
Rubem