quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Nagibe de Melo Jorge Neto* - Das Questões Políticas e da Possibilidade do Controle das Políticas Públicas pelo Poder Judiciário


Das Questões Políticas e da Possibilidade do Controle das Políticas Públicas pelo Poder Judiciário


*Juiz Federal na Seção Judiciária do Ceará. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-Graduado pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Ceará. Professor Universitário.


SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 As questões políticas e as questões meramente políticas. 3 Os direitos fundamentais difusos e coletivos. 4 As políticas públicas. 5 O papel do Poder Judiciário. 6 As leis orçamentárias. 7 Conclusão.


RESUMO
O presente artigo pretende passar em revista o conceito de questão política e investigar acerca da possibilidade de controle das chamadas políticas públicas pelo Poder Judiciário. Leva em consideração o advento dos direitos fundamentais transindividuais de segunda e terceira gerações, no pós-guerra, com o surgimento do Welfare State e o papel do Poder Judiciário como agente da democracia participativa através do processo.


1 Introdução

O presente trabalho tem por objetivo lançar um olhar sobre as chamadas questões políticas. É corrente, na doutrina tradicional, a referência a tais questões como um espaço livre da sindicabilidade judicial, sem, contudo, definir-lhe nitidamente o alcance. Sabemos que o princípio da separação dos poderes alija o Poder Judiciário de algumas decisões, atribuindo-as exclusivamente aos Poderes Legislativo e Executivo. É inegável, por outro lado, que o Poder Judiciário exerce uma função também política, na medida em que suas decisões, não raras vezes, direcionam ou determinam o fazer estatal. Mas o que é afinal uma questão política e em que casos o Judiciário poderia sobre ela ingerir?

A questão não é nova; já estava presente na célebre decisão Marbury v. Madison, tendo sido seus contornos brilhantemente traçados pelo chief-justice Marshall (BARBOSA, 1964). Nada obstante, o progressivo e interrupto evolver das estruturas sociais, cada vez mais complexas, a presença cada vez mais eloqüente dos direitos sociais e transindividuais, a reclamarem a atuação por parte dos Poderes Públicos, impõe o repensar do problema.

A Constituição da República é a garantia suprema da implementação e efetivação dos direitos fundamentais, sejam de primeira, segunda, terceira ou quarta geração (BONAVIDES, 2001). Ante a inércia ou descumprimento desses direitos por parte dos Poderes Públicos, a sociedade civil vem, reiterada e incansavelmente, clamando pronunciamentos do Poder Judiciário, que, atônito, vacila entre o extrapolar de suas competências e a abstenção de decidir acerca das questões políticas.

A fim de atingirmos minimamente o intento, começaremos por investigar o que é, afinal, política, para depois podermos estabelecer o que vêm a ser as chamadas questões políticas e dentro delas situar as políticas públicas. As questões políticas imporiam ao Poder Judiciário a escusa de julgamento? As políticas públicas necessárias para a efetivação dos direitos fundamentais sociais e dos direitos fundamentais transindiviuais constituir-se-iam em questões políticas e, por isso, estariam isentas, da sindicabilidade judicial? E, por fim, quais os desdobramentos das respostas que procuraremos construir?

A legitimidade do Poder Judiciário, assim como suas próprias limitações orgânico-estruturais não podem ser olvidadas na análise dessas questões. Há, ainda, outros questionamentos sem os quais seria difícil focar adequadamente o problema: a configuração moderna da democracia, a separação de poderes, seus limites e a possibilidade da atualização de suas estruturas e, imediatamente, a função do processo enquanto instrumento de participação popular. Essas questões serão, contudo, só levemente tangenciadas. Intentaremos, quando muito, sugerir algumas bases para o enfrentamento do tema. Preocupar-nos-á mais de perto o definir as questões políticas e o estabelecer as hipóteses em que ao Poder Judiciário é dado sindicar as políticas públicas.

2 As questões políticas e as questões meramente políticas

Norberto Bobbio assim explica o significado do termo política:

Derivado do adjetivo polis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade. (BOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, 2000, p 954).

Eduardo Bittar, de modo mais específico, destaca que

Política tem relação com os modos de organização do espaço público, objetivando o convívio social. Tem relação, também, com as formas de gerenciamento da coisa pública, dos recursos a ela ligados, com as estratégias de definição de critérios para o alcance de fins comuns, com a eleição das molas propulsoras do desenvolvimento social, com a definição de ideologias predominantes na constituição da arquitetura da sociedade. (2002, p. 27/28)

Partindo-se dessa acepção, a região política e, portanto, o conceito de questão política seria o mais amplo possível, como adverte Rui Barbosa:

Desde Marshall, no memorável aresto em que se sagrou a jurisdição dos tribunais contra o exercício inconstitucional das faculdades do governo, ou do Congresso, ficou, ao mesmo tempo, reconhecido existir no domínio desses poderes uma região impenetrável à autoridade da justiça: a região política.
Mas em que termos se deve entender o horizonte desta expressão? Adotada em sua acepção ampla, ela abrangeria no seu raio a esfera inteira da soberania constitucional, baldaria absolutamente a competência, que para o judiciário se reclama, de coibir-lhes as incursões no terreno do direito individual, reduzindo essa competência a nada. O poder executivo e o poder legislativo são órgãos políticos do regímen; política é sua origem, seu carácter, sua atividade; políticas tôdas as suas funções. A se considerar, pois, a êste aspecto a ituação desses poderes, não haveria um só de seus ato, para o qual não se pudesse reivindicar imunidade à sindicância dos tribunais; e o ascendente pretendido por êstes, como propugnáculo das garantias constitucionais contra a usurpação do chefe do Estado, ou das assembléias representativas, seria pura e simplesmente uma burla. (BARBOSA, 1962, p. 96)

É preciso fugir dessa conceituação ampla. De modo geral e tradicionalmente entendido quer pela doutrina, que pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, questões políticas são aquelas que não podem ser objeto de sindicabilidade judicial. Essa definição importa, todavia, em uma petição de princípio e assaca uma outra pergunta: quais questões que, por serem estritamente políticas, não podem ser objeto de apreciação judicial?

Rui Barbosa, na esteira da doutrina norte-americana construída a partir da célebre decisão proferida no Marbury v. Madison, posiciona-se no sentido de que as questões políticas em sentido estrito dizem com a maneira de exercitar o poder atribuído ao Executivo ou ao Legislativo, à conveniência e à oportunidade desse exercício. Destaca ainda o eminentíssimo Rui que não se pode falar em questão política em sentido estrito, ou, por outra, não se pode afastar o controle jurisdicional quando o ato político violar um direito individual constitucionalmente protegido. Sua conclusão é lapidar:

Atos políticos do Congresso, ou do executivo, na acepção em que esse qualificativo traduz exceção à competência da justiça, consideram-se aquêles, a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição prudencial do poder, e o exercício dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo.
Em prejuízo dêstes o direito constitucional não permite arbítrio a nenhum dos poderes.
Se o ato não é daqueles, que a Constituição deixou à discrição da autoridade, ou se, ainda que seja, contravém às garantias individuais, o caráter político da função esbulha do recurso reparador as pessoas agravadas.
Necessário é, em terceiro lugar, que o fato, contra que se reclama, caiba realmente na função, sob cuja autoridade se acoberta; porque esta pode ser apenas um sofisma, para dissimular o uso de poderes diferentes e proibidos.
Numa palavra:
A violação de garantias individuais, perpetrada à sombra de funções públicas, não é imune à ação dos tribunais.
A êstes compete sempre verificar se a atribuição política, invocada excepcionalmente, abrange em seus limites a faculdade exercida. [Grifos no original] (BARBOSA, 1962, p. 108)

Gérson Marques de Lima, invocando Rui Barbosa, lembra que tradicionalmente se tem sustentado não poder o Judiciário se pronunciar acerca das questões meramente políticas, também denominadas questões simples, exclusiva ou puramente políticas (2001, p. 31). Para ele

Meramente políticas são as que se resolvem com faculdades exclusivamente políticas, através de poderes unicamente políticos, mediante critério discricionário da autoridade, e cujos requisitos não podem ser atribuídos à apreciação de outro Poder. As medidas propriamente políticas são discricionárias, no sentido de pertencerem à discrição do Congresso ou do Governo a oportunidade e a conveniência de sua adoção. (Idem, ibidem)

Ao posicionamento de Rui Barbosa, o autor traz o contra-ponto de Lourival Vilanova, para quem não há distinção definitiva entre atos políticos e atos judiciais. Segundo Marques de Lima

Na sua concepção [refere-se a Lourival Vilanova], a partir do poder constituinte, portador de atos políticos em sua maior discricionariedade de meios e fins, todos os fatos políticos, no interior do ordenamento, são fatos juridicamente qualificados. Inexistem questões só políticas vestidas de juridicidade. Às vezes, acrescenta, a qualificação de questões puramente políticas é dada pelo Poder Judiciário, como preliminar, afastando o seu exame por esse: o Judiciário não deixa de verificar a questão por ser política, mas a questão é política porque ele não a aprecia. Esta estratégia tem sido uma política prudencial adotada pela Suprema Corte norte-americana, ‘para afastar-se neutralmente dos conflitos de interesses, que escapam à mera técnica de apreciar jurisdicionalmente as controvérsias’. (LIMA, 2001, p. 32-33)

De tudo isso pode-se concluir que as questões meramente políticas seriam aquelas que não podem ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário e não podem sê-lo porque estão no âmbito de discricionariedade do Poder Executivo ou do Poder Legislativo e não interferem no exercício de um direito individual. Parece-me, por isso, que o problema da possibilidade ou não de apreciação das questões políticas pelo Poder Judiciário diz muito mais com a competência, definida pelo texto constitucional, de cada um dos Poderes da República que com a natureza da controvérsia envolvida. Se a Constituição reserva um espaço de decisão à conveniência e oportunidade de um dos poderes, não pode um outro aí ingerir. Nessa vertente também se posiciona Gérson Marques de Lima, para quem

Mesmo no exercício das atribuições puramente políticas, os Poderes não podem contrariar a letra da Constituição, especialmente quanto ao processo formalizador e aos requisitos constitucionais indispensáveis para a concretização da medida. Qualquer ofensa neste sentido autorizará a sua submissão ao controle judicial. Ficam-lhe imunes apenas os aspectos da conveniência e da oportunidade, em nome da necessária separação dos Poderes; restando as demais questões políticas – intrínsecas à medida – passíveis de controle judicial. [grifo não existente no original] (LIMA, 2001, p. 33.)

3 Os Direitos Fundamentais Difusos e Coletivos

A passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o surgimento dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, os chamados direitos transindividuais, vêm dar uma nova configuração ao problema dos objetivos do Estado e da separação de poderes, e exige novas respostas.

Como aponta Rodolfo Camargo Mancuso (2001, pp .732-733), invocando a lição de Fábio Konder Comparato, no alvorecer do Estado Moderno, de índole liberal, atribuía-se proeminência ao Poder Legislativo. O Estado cumpria a sua função básica ao legislar, estabelecendo condutas comissivas ou omissivas a serem observadas coercitivamente pelos súditos. Com o advento do Estado Social, a partir da segunda metade do século XX, o Estado, além de impor-se limites negativos, impõe-se objetivos a serem alcançados em benefício de toda a coletividade. Surgem os direitos sociais ou, mais apropriadamente, os direitos transindividuais, que, a rigor, não são titulados por nenhum particular, mas por toda uma coletividade: o direito à saúde, à educação, ao meio-ambiente saudável, ao crescimento econômico etc.

Tais direitos, dentro da concepção de Rui Barbosa, estariam excluídos da sindicabilidade judicial porque, de um lado, inseridos no âmbito de discricionariedade dos Poderes Legislativo e Executivo e, de outro, não caracterizados como direitos individuais. Havemos de convir, entretanto, que essa concepção, fundida no esplendor do liberalismo, não se presta mais a responder à realidade que nos inquire. Uma certa perplexidade ante o surgimento dos chamados direitos sociais foi assim expressada por Pinto Ferreira:

Questões políticas, no entender de Marshall, são aquelas que dizem respeito à nação e não aos direitos individuais. Os norte-americanos as chamam political questions; são os actes de gouvernément dos franceses, os acts of State para os ingleses e Justizlose Hoheitsakte para os alemães.
No século XIX e princípio do século XX era fácil distinguir entre o interesse nacional e os interesses indivicuais, para saber se a questão era política. Hoje em dia a situação é mais difícil em face da progressiva tendência ao intervencionismo por parte do Estado. Uma orientação socialista dificulta ainda mais essa apreciação. (FERREIRA, 1999, p. 424)

A doutrina moderna de inspiração alemã assentou que os direitos fundamentais são normas com estrutura de princípios, que guardam uma dimensão subjetiva e outra subjetiva. Os direitos fundamentais são mandados de otimização (Optimierungsgebote). Assim também, os direitos fundamentais transindividuais. Marcelo Lima Guerra, invocando Robert Alexy, assim os explica:

Os princípios são normas dotadas de uma estrutura aberta, as quais ao invés de comandarem a realização de uma conduta específica, “ordenan que se realice algo em la mayor medida posible, em relación com las possibilidades jurídicas y fácticas”. Daí ter Alexy definido os princípios como “mandados de otimização”, caracterizados, portanto, “por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferentes grados y que la medida de su cumplimiento no sólo depende de las possibilidades reales sino también de las jurídicas”. E arremata Alexy: “El âmbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos”. (2003, pp. 84-85)

A Constituição erigiu ao status de princípio diversos objetivos políticos a serem alcançados pelo Estado. Esse princípios apresentam-se muitas vezes como direitos fundamentais ora em uma dimensão subjetiva, ora em uma dimensão objetiva. Os direitos fundamentais devem ser prestados ao cidadão em um grau ótimo, atendidas as limitações fáticas e jurídicas.

4 As políticas públicas

De tudo quanto foi dito, podemos afirmar que todas as questões relacionadas ao dever e ao fazer estatal, ao estabelecimento de rumos e metas pelo Estado, são questões políticas. Essas questões não estarão sujeitas ao controle judiciário na parte em que estejam confiadas à discricionariedade dos demais Poderes da República. Grosso modo, destaque-se de logo, a discricionariedade estará limitada pelo menos quanto aos aspectos formais da medida.

No que diz com os aspectos materiais, as medidas assumidas pelos demais Poderes da República devem guardar compatibilidade com os objetivos traçados pela Constituição. A margem de discricionariedade é, indubitavelmente, bastante ampla, mas o legislador ou o administrador estará, em última análise, jungido ao mandado constitucional de otimização.

As questões relacionadas ao direcionamento do Estado em busca de desincumbir-se dos seus fins são questões relacionadas à escolha a) dos objetivos estatais de curto, médio e longo prazos e b) das ações governamentais capazes de atingi-los. As questões políticas dizem, portanto, com a implementação de políticas públicas, sejam elas implementadas através da edição de instrumentos normativos tão-somente, sejam elas implementadas através de ações estatais propriamente ditas, por intermédio dos serviços públicos ou da intervenção do Estado na economia.

Convém destacar que os principais objetivos estatais não são objeto de escolha por quem quer que seja. Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil já estão dispostos, por obra do constituinte originário, no art. 3.º da Constituição da República Federativa do Brasil, quais sejam, I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Além desses, Willis Santiago Guerra Filho reporta-se à opção política ou fórmula política fundamental da Carta de 1988. Segundo ele

O primeiro artigo da Constituição de 88 define, assim, a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, e elenca os princípios sob os quais ela se fundamenta. Todo o restante do texto constitucional pode ser entendido como uma explicitação do conteúdo dessa fórmula política, explicitação essa que, por mais extenso que seja esse texto, ainda é e sempre será uma tarefa inconclusa, além de ser uma tarefa de primordial importância, principalmente nesse período inicial de vigência da nova Carta, em que vem sendo submetida a tantas – e, já por isso, questionáveis – reformas. (GUERRA FILHO, 2001, p. 19)

Os objetivos propostos pela Constituição da República podem, entretanto, ser atingidos por diversas vias, de acordo com variadas concepções políticas. Não há um caminho unívoco que possa ser apontado como o correto ou, ainda, opções políticas inevitáveis, a não ser as assumidas pela própria Constituição. Aliás, uma tal concepção seria frontalmente contrária ao Estado Democrático de Direito e ao pluralismo que deve presidi-lo. Esse é, como explica Andréas J. Krell, o “livre espaço de conformação” do legislador:

A constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado “livre espaço de conformação” (Ausgestaltungsspielraum). Essa função legislativa seria degradada se entendida como mera função executiva da constituição. Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante às alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe principalmente aos governos e aos parlamento. (KRELL, 2002, p. 22)

É inegável, portanto, que um amplo espaço de discricionariedade é conferido aos Poderes Executivos e Legislativos dos três níveis da federação. Mas em que ponto acaba a discricionariedade dos poderes públicos? Quando e de que maneira o cidadão pode exigir do próprio Estado o estabelecimento de uma política pública, o cumprimento de uma política pública já assumida, ou, ainda, a modificação ou a interrupção de políticas públicas contrárias aos objetivos constitucionais ou de ações estatais contrárias às políticas públicas assumidas?

Aqui há de se diferençar dois níveis de atuação governamental. Um na escolha da política pública; outro, na sua implementação. Frente a uma demanda por atendimento de saúde que afeta um bairro de uma grande cidade, por exemplo, o Poder Executivo municipal estaria obrigado a apresentar uma política pública para solucioná-lo. Seja mediante a construção de um novo hospital; seja mediante a reativação de um posto de saúde; seja mediante a transposição do atendimento para órgãos de saúde existentes em outros bairros. Esse é o primeiro dever do Estado. Uma vez apresentada a política pública escolhida, tem o Estado dever de implementá-la tal qual foi planejado.

O cidadão tem, portanto, o direito de exigir do poder público, por intermédio do Estado-juiz, que formule uma política pública para que seja implementado um certo direito fundamental. Uma vez concebida a política estatal, o cidadão tem o direito de vê-la implementada em prazo razoável. O Estado-juiz poderia, assim, determinar ao órgão público uma obrigação de fazer consistente da formulação de uma política pública razoável para a realização dos direitos, bem como, a posteriori, uma obrigação de fazer consistente na implementação da política pública formulada.

5 O papel do Poder Judiciário

Na discussão jurídica das políticas públicas, estará em jogo saber se a concretização dos direitos fundamentais pelo Estado está sendo efetivada, consideradas as limitações fáticas e jurídicas, em um patamar ótimo. O Judiciário, por óbvio, não poderá escolher as políticas a serem efetivadas. A sindicabilidade das políticas públicas pelo Poder Judiciário, além dos limites inerentes à competência constitucional de cada um dos poderes públicos – quando a constituição outorga aos representantes do povo legitimamente eleitos ou a outros órgãos estatais ampla margem de discricionariedade –, está também contida por limites técnicos, procedimentais e organizacionais do Poder Judiciário.

O Judiciário não tem como promover os mesmos debates que têm lugar no legislativo e muito raramente pode desenvolver estudos técnicos tão amplos quanto os desenvolvidos pelo executivo, além de não ter acesso à totalidade dos dados de que dispõe o administrador público. É a chamada reserva de consistência. O conceito vem da doutrina e jurisprudência norte-americanas e é assim sintetizado por Sergio Moro:

Por força do argumento democrático, já se afirmou que as interpretações judiciais exigem uma “reserva de consistência” para se sobreporem às interpretações legislativas.
Em sede de controle de inconstitucionalidade por ação, tal reserva exige que o Judiciário apresente argumentos substanciais de que o ato normativo impugnado é incompatível com a Constituição.
Se o caso for de inconstitucionalidade por omissão, não há decisão legislativa à qual o Judiciário deve sobrepor-se. Não obstante, o desenvolvimento e a efetivação da Constituição são sempre atividades que requerem cuidado, mesmo quando presente vazio legislativo, principalmente em virtude da carência de legitimidade democrática do Judiciário.
A intervenção da jurisdição constitucional depende da reunião de argumentos e elementos suficientes para demonstrar o acerto do resultado que se pretende alcançar. (MORO, 2004, p. 221)

Nada obstante, é igualmente certo que o Poder Judiciário poderá decidir acerca a) da existência ou não de uma política pública; b) da compatibilidade da política pública existente com os preceitos constitucionalmente estatuídos – ocasião em que, como já vincado, deverá deixar amplo espaço de conformação ao legislador e ao administrador; e, finalmente, c) acerca da efetiva implementação da política pública estabelecida. Pode, ainda, atuar negativamente determinando a suspensão ou interrupção de políticas que afrontem os princípios constitucionais.

Nessa quadra, sobressai a importância da Ação Civil Pública, da Ação Popular e da Ação de Improbidade. Essas ações têm muitos legitimados, o que permite a capilaridade e democratização dos debates em torno das políticas públicas, além de possibilitar um controle mais efetivo, dada a maior proximidade aos órgãos responsáveis por sua execução.

O Supremo Tribunal Federal tem papel relevante no controle das políticas públicas, mas sua atuação tem também limites evidentes. É que em sede de controle abstrato de constitucionalidade o Supremo Tribunal não determina obrigações de fazer ou não fazer. Essa circunstância esvazia em grande parte o controle concentrado de constitucionalidade das políticas publicas a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal. A não ser nos casos de omissão inconstitucional – quando os poderes púbicos têm o dever de adotar programas ou planos de ação políticos para o atingimento dos diversos fins constitucionalmente estabelecidos – e no caso da atuação como legislador negativo.

O aspecto mais importante da atuação do Poder Judiciário parece mesmo ser a atuação da primeira instância. A ampla utilização de ações civis públicas, ações de improbidade e ação populares tem contribuído para a democratização das decisões políticas tomadas pelo legislador ou pelo administrador.

O modelo da democracia representativa clássica parece estar à beira do esgotamento. As políticas públicas assumidas e desempenhas pelos poderes públicos são múltiplas e a centralização do debate acerca delas no parlamento torna impossível o seu efetivo controle pelo povo. São necessários novos instrumentos que permitam uma participação popular mais direta e provoque a publicização do debate acerca das políticas públicas. O processo civil pode funcionar como um desses instrumentos. Seja porque tem curso próximo das populações interessadas, seja porque dispõe de ações especiais, com uma multiplicidade de legitimados capazes de promover a defesa e a efetivação dos direitos fundamentais mediante o controle das políticas públicas do Estado.

6 As Leis Orçamentárias

As políticas públicas estão normalmente definidas nas Leis Orçamentárias, sobretudo no que diz com as despesas de capital. O controle das políticas públicas, ainda que as ignore, reflete inexoravelmente nas Lei Orçamentárias. Quando o Poder Judiciário propõe-se a controlar políticas públicas é inevitável que determine gastos, estejam ou não previstos na Lei Orçamentária. O § 1.º do art. 165 da Constituição da República estabelece que

§ 1.º. A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.

Já o § 2.º do mesmo artigo dispõe

§ 2.º. A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

O Superior Tribunal de Justiça vem adotando uma postura de vanguarda, seja para determinar a inclusão, na lei orçamentária, de verbas capazes de possibilitarem a implementação e execução das políticas públicas, seja determinando a própria execução de políticas públicas já disciplinadas em normas infraconstitucionais. Vale a transcrição dos seguintes acórdãos:
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO.1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas.4. Recurso especial provido.
(STJ, 2.ª T. REsp 493811/SP, rel. Ministra ELIANA CALMON (1114) DJ 15.03.2004, p. 236) ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.5. Recurso especial provido.
(STJ, 2.ª T. REsp. 429570 / GO, rel. Ministra ELIANA CALMON. DJ 22.03.2004, p. 277)

O período histórico-político que atravessamos, de elevadíssimo contingenciamento de gastos públicos para pagamento dos serviços da dívida, em detrimento das prementes necessidades sociais que se multiplicam de forma alarmante, está a reclamar da doutrina um estudo mais alentado acerca do controle orçamentário e, sobremodo, do direito à execução orçamentária. A postura de absenteísta por parte do Judiciário ainda prevalece quando a sentença é condicionada ou condiciona a execução orçamentária. Por óbvio que o Judiciário não pode ditar, ao seu talante, os gastos públicos, mas, como mostram os acórdãos da lavra da Ministra Eliana Calmon, soluções outras são possíveis.

7 Conclusão

O advento de novas categorias de direitos, nascidas do Welfare State intervencionista, no pós-guerra, diferentes dos direitos individuais subjetivos clássicos, está a exigir da doutrina e do próprio Poder Judiciário novas respostas às questões da jurisdicionalização das chamadas questões políticas e da possibilidade de controle judicial das políticas públicas.

As questões políticas derivam de direitos fundamentais, considerados em sua dimensão objetiva, os quais reclamam a efetivação de seu conteúdo em um grau ótimo, consideradas as limitações de caráter fático e jurídico. Está entre as funções do Poder Judiciário pronunciar-se acerca da razoabilidade na implementação das políticas públicas, ainda que, não estando efetivamente configurado o descumprimento do mandado de otimização, possa se valer da chamada reserva de consistência.

É possível, portanto, o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário, desde que preservado o espaço de discricionariedade dos Poderes Legislativo e Executivo, constitucionalmente estabelecido, o qual diz com a conveniência e oportunidade na escolha dos meios capazes de atingir os fins estatais definidos no texto constitucional.

Assim também, a implementação de uma dentre as muitas políticas públicas possíveis para a concretização dos objetivos estatais fixados nos direitos fundamentais é um imperativo constitucional, alheio à discricionariedade. O Poder Judiciário poderá, por isso, determinar uma obrigação de fazer contra o Estado ainda que a escolha da medida fique a critério do seu executor. E, uma vez escolhido o meio, a execução da medida é também devida e passível de controle judicial.

A complexidade da sociedade pós-moderna reclama espaço para o exercício da democracia no âmbito do Poder Judiciário, servindo o processo civil como instrumento de controle das decisões tomadas pelos representantes do povo. A centralização das decisões políticas no parlamento e a multiplicidade das políticas públicas que são todos os dias definidas torna impossível o seu efetivo controle no âmbito do próprio parlamento.



BIBLIOGRAFIA

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BITTAR, Eduardo C. B. Doutrinas e filosofias políticas: contribuição para a história das idéias políticas. São Paulo: Atlas, 2002.

BOBBIO, Noberto; MATTEUCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política [tradução Carmem C. Varriale et. al.; coordenação da tradução João Ferreira; revisão geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cascais]. 5 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

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GUERRA, Marcelo. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

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_________________. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira: estudo de casos – abordagem interdisciplinar. Fortaleza: ABC Editora, 2001.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A ação civil pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas. Ação civil pública: Lei 7.347/1995 – 15 anos. Edis Milaré (coord.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

Um comentário:

RUBEM FILHO disse...

Está de parabéns o amigo Nagibe por explorar problema tão atual e de difícil resolução.
De fato, o debate acerca do controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário vem sendo travado em momento muito oportuno, de quebra de paradigmas e conceito solidificados com o tempo, abrindo uma nova perspectiva de análise do Estado como ente garantidor de necessidades que podem ser cobradas judicialmente, desde que não implementadas a contento.
Este espaço agradece a pronta colaboração do autor.
Rubem