domingo, 26 de agosto de 2007

Alexandre Vidigal de Oliveira* - O preconceito contra a lei por sua origem


O preconceito contra a lei por sua origem


*Juiz Federal Titular da 20ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal/Doutorando em Direito Fundamentais pela UCIIIM, de Madri, Espanha.


* texto produzido em março de 2005


A dimensão temporal de vigência da lei, é de regra, indeterminada, sendo limitada quando a própria norma assim disponha. Este o princípio que rege a existência da lei no tempo, de modo que, não se destinando à vigência temporária, a lei se perpetua até que outra a modifique ou revogue (LICC, art. 2º).

Não basta, porém, a vigência da lei para informar que a norma existente encontra-se apta a produzir seus efeitos. No plano da efetividade, esta aptidão somente se firmará quando a lei existir validamente, ou seja, quando a lei encontrar-se em conformidade com a Constituição. É pela Constituição, assim, que se estabelece o parâmetro maior de sustentabilidade do ordenamento jurídico. Encontrando-se a lei vigendo validamente nenhum outro aspecto substancial pode desautorizar a produção dos seus efeitos ao caso concreto.

Neste contexto insere-se a advertência da impropriedade em se emitir juízo de valor à norma, em razão do momento histórico em que fora editada. Expressões desqualificadoras atribuídas à lei, como sendo ela produto do “entulho autoritário” ou da “herança ditatorial”, nada mais acentuam do que um sentimento de repulsa despropositado.

Em recente episódio da história nacional, envolvendo reportagem produzida por jornalista estrangeiro, a atitude do governo fora intensamente contestada no cenário jurídico, dentre outras razões, por ter amparado sua reação em uma norma editada em 1980 – a Lei 6815. A irresignação coletiva, por este aspecto temporal da norma, bem registra o descuido em se valorá-la por sua origem, refletindo posição preconceituosa, como que se pudesse admitir que uma lei vigente validamente, por ter sido editada em épocas caracterizadas por regimes autoritários, carecesse, ou mesmo não pudesse dispor, da mesma qualidade da norma vigente editada no regime democrático. Como toda postura discriminatória, discriminar a lei, desqualificando-a, é, no mínimo, optar por uma visão parcial, limitada e distorcida, com manifesto propósito de se impor limites à efetividade da lei antiga, e com o indevido intento de se subtrair sua capacidade atual de produzir efeitos.

O que parece grave, mais do que o preconceito à lei, propriamente dito, é que, não raras vezes, este precipitado e inadvertido sentimento discriminatório tem-se traduzido em componente de destaque a sustentar os argumentos que se exigem ao enfrentamento jurídico de um caso concreto, como que se fosse razoável admitir que leigos ou doutos pudessem ser contaminados por esta segregação da norma em razão de sua origem. E grave também é se constatar que sem justificação adequada a argumentação jurídica cai no vazio.

No ordenamento jurídico nacional, aí consideradas as leis que vigem validamente, muitas normas originárias dos mais distintos momentos históricos, inclusive os de amarga lembrança, encontram-se aí produzindo naturalmente seus efeitos, disciplinando com inteira propriedade e adequação o tema a que se vinculam. Alguns exemplos, apenas elucidativos, revelam esta realidade: a Ação Popular, pela Lei 4717, de 1965; a organização da Justiça Federal, Lei 5010, de 1966; a Ação de Alimentos, Lei 5478, de 1968; o Código de Processo Civil, Lei 5869, de 1973; a Lei do Divórcio, Lei 6515, de 1977; a Lei Orgânica da Magistratura, Lei Complementar 35, de 1979.

Até mesmo em período recente da história do país, de 1990 a 1992, e que culminou com a renúncia de mandato presidencial, não se deixou de produzir leis muito apropriadas, úteis, necessárias e aplaudidas. São exemplos o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078, de 11/9/1990; a Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8429, de 02/6/1992; a Lei do Inquilinato, Lei 8245, de 18/10/1991.

Tudo isso sem se considerar que o menosprezo à lei, em razão de sua origem, não ultrapassa os limites da falsa impressão. As inconstitucionalidades já declaradas pelo Supremo Tribunal Federal bem revelam não se tratar aquele vício de nenhum “privilégio” adstrito às leis editadas no passado, alcançando toda norma, independentemente do momento histórico de sua criação.

Perante a Constituição é que se encontram estabelecidos os critérios indispensáveis de validade da norma, e somente diante dela é que se é possível entender a unidade e coerência do sistema jurídico. A lei vincula-se ao ordenamento jurídico por seu conteúdo, não por sua origem. Velha na origem, a norma se torna atual e contemporânea por sua adequação constitucional. Por isso, o ranço histórico não pode autorizar que a lei válida, vinculada a determinado período, seja marginalizada. Discriminar a lei, evidenciando sua origem, é adotar conduta equivocada: assim como todos são iguais perante a lei, toda lei vigente e sem vício de validade constitucional, é igual perante a Constituição.

2 comentários:

RUBEM FILHO disse...

O tema aqui invocado pelo Alexandre Vidigal, além de extremamente interessante, deveria servir para o debate nas aulas de Sociologia Jurídica.
De fato, da 'praxis' jurídica, observa-se o discurso francamente preconceituoso contra determinadas expressões normativas, em decorrência, principalmente, do momento de sua edição, o que se constitui, sem sombra de dúvidas, em erro.
Este espaço fica mais uma vez agradecido pela contribuição prestada pelo Juiz Federal Alexandre Vidigal, verdadeiro expoente da produção jurídica nacional.
Rubem

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom