domingo, 26 de agosto de 2007

Alexandre Vidigal de Oliveira* - O preconceito contra a lei por sua origem


O preconceito contra a lei por sua origem


*Juiz Federal Titular da 20ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal/Doutorando em Direito Fundamentais pela UCIIIM, de Madri, Espanha.


* texto produzido em março de 2005


A dimensão temporal de vigência da lei, é de regra, indeterminada, sendo limitada quando a própria norma assim disponha. Este o princípio que rege a existência da lei no tempo, de modo que, não se destinando à vigência temporária, a lei se perpetua até que outra a modifique ou revogue (LICC, art. 2º).

Não basta, porém, a vigência da lei para informar que a norma existente encontra-se apta a produzir seus efeitos. No plano da efetividade, esta aptidão somente se firmará quando a lei existir validamente, ou seja, quando a lei encontrar-se em conformidade com a Constituição. É pela Constituição, assim, que se estabelece o parâmetro maior de sustentabilidade do ordenamento jurídico. Encontrando-se a lei vigendo validamente nenhum outro aspecto substancial pode desautorizar a produção dos seus efeitos ao caso concreto.

Neste contexto insere-se a advertência da impropriedade em se emitir juízo de valor à norma, em razão do momento histórico em que fora editada. Expressões desqualificadoras atribuídas à lei, como sendo ela produto do “entulho autoritário” ou da “herança ditatorial”, nada mais acentuam do que um sentimento de repulsa despropositado.

Em recente episódio da história nacional, envolvendo reportagem produzida por jornalista estrangeiro, a atitude do governo fora intensamente contestada no cenário jurídico, dentre outras razões, por ter amparado sua reação em uma norma editada em 1980 – a Lei 6815. A irresignação coletiva, por este aspecto temporal da norma, bem registra o descuido em se valorá-la por sua origem, refletindo posição preconceituosa, como que se pudesse admitir que uma lei vigente validamente, por ter sido editada em épocas caracterizadas por regimes autoritários, carecesse, ou mesmo não pudesse dispor, da mesma qualidade da norma vigente editada no regime democrático. Como toda postura discriminatória, discriminar a lei, desqualificando-a, é, no mínimo, optar por uma visão parcial, limitada e distorcida, com manifesto propósito de se impor limites à efetividade da lei antiga, e com o indevido intento de se subtrair sua capacidade atual de produzir efeitos.

O que parece grave, mais do que o preconceito à lei, propriamente dito, é que, não raras vezes, este precipitado e inadvertido sentimento discriminatório tem-se traduzido em componente de destaque a sustentar os argumentos que se exigem ao enfrentamento jurídico de um caso concreto, como que se fosse razoável admitir que leigos ou doutos pudessem ser contaminados por esta segregação da norma em razão de sua origem. E grave também é se constatar que sem justificação adequada a argumentação jurídica cai no vazio.

No ordenamento jurídico nacional, aí consideradas as leis que vigem validamente, muitas normas originárias dos mais distintos momentos históricos, inclusive os de amarga lembrança, encontram-se aí produzindo naturalmente seus efeitos, disciplinando com inteira propriedade e adequação o tema a que se vinculam. Alguns exemplos, apenas elucidativos, revelam esta realidade: a Ação Popular, pela Lei 4717, de 1965; a organização da Justiça Federal, Lei 5010, de 1966; a Ação de Alimentos, Lei 5478, de 1968; o Código de Processo Civil, Lei 5869, de 1973; a Lei do Divórcio, Lei 6515, de 1977; a Lei Orgânica da Magistratura, Lei Complementar 35, de 1979.

Até mesmo em período recente da história do país, de 1990 a 1992, e que culminou com a renúncia de mandato presidencial, não se deixou de produzir leis muito apropriadas, úteis, necessárias e aplaudidas. São exemplos o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078, de 11/9/1990; a Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8429, de 02/6/1992; a Lei do Inquilinato, Lei 8245, de 18/10/1991.

Tudo isso sem se considerar que o menosprezo à lei, em razão de sua origem, não ultrapassa os limites da falsa impressão. As inconstitucionalidades já declaradas pelo Supremo Tribunal Federal bem revelam não se tratar aquele vício de nenhum “privilégio” adstrito às leis editadas no passado, alcançando toda norma, independentemente do momento histórico de sua criação.

Perante a Constituição é que se encontram estabelecidos os critérios indispensáveis de validade da norma, e somente diante dela é que se é possível entender a unidade e coerência do sistema jurídico. A lei vincula-se ao ordenamento jurídico por seu conteúdo, não por sua origem. Velha na origem, a norma se torna atual e contemporânea por sua adequação constitucional. Por isso, o ranço histórico não pode autorizar que a lei válida, vinculada a determinado período, seja marginalizada. Discriminar a lei, evidenciando sua origem, é adotar conduta equivocada: assim como todos são iguais perante a lei, toda lei vigente e sem vício de validade constitucional, é igual perante a Constituição.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Nagibe de Melo Jorge Neto* - Das Questões Políticas e da Possibilidade do Controle das Políticas Públicas pelo Poder Judiciário


Das Questões Políticas e da Possibilidade do Controle das Políticas Públicas pelo Poder Judiciário


*Juiz Federal na Seção Judiciária do Ceará. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-Graduado pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Ceará. Professor Universitário.


SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 As questões políticas e as questões meramente políticas. 3 Os direitos fundamentais difusos e coletivos. 4 As políticas públicas. 5 O papel do Poder Judiciário. 6 As leis orçamentárias. 7 Conclusão.


RESUMO
O presente artigo pretende passar em revista o conceito de questão política e investigar acerca da possibilidade de controle das chamadas políticas públicas pelo Poder Judiciário. Leva em consideração o advento dos direitos fundamentais transindividuais de segunda e terceira gerações, no pós-guerra, com o surgimento do Welfare State e o papel do Poder Judiciário como agente da democracia participativa através do processo.


1 Introdução

O presente trabalho tem por objetivo lançar um olhar sobre as chamadas questões políticas. É corrente, na doutrina tradicional, a referência a tais questões como um espaço livre da sindicabilidade judicial, sem, contudo, definir-lhe nitidamente o alcance. Sabemos que o princípio da separação dos poderes alija o Poder Judiciário de algumas decisões, atribuindo-as exclusivamente aos Poderes Legislativo e Executivo. É inegável, por outro lado, que o Poder Judiciário exerce uma função também política, na medida em que suas decisões, não raras vezes, direcionam ou determinam o fazer estatal. Mas o que é afinal uma questão política e em que casos o Judiciário poderia sobre ela ingerir?

A questão não é nova; já estava presente na célebre decisão Marbury v. Madison, tendo sido seus contornos brilhantemente traçados pelo chief-justice Marshall (BARBOSA, 1964). Nada obstante, o progressivo e interrupto evolver das estruturas sociais, cada vez mais complexas, a presença cada vez mais eloqüente dos direitos sociais e transindividuais, a reclamarem a atuação por parte dos Poderes Públicos, impõe o repensar do problema.

A Constituição da República é a garantia suprema da implementação e efetivação dos direitos fundamentais, sejam de primeira, segunda, terceira ou quarta geração (BONAVIDES, 2001). Ante a inércia ou descumprimento desses direitos por parte dos Poderes Públicos, a sociedade civil vem, reiterada e incansavelmente, clamando pronunciamentos do Poder Judiciário, que, atônito, vacila entre o extrapolar de suas competências e a abstenção de decidir acerca das questões políticas.

A fim de atingirmos minimamente o intento, começaremos por investigar o que é, afinal, política, para depois podermos estabelecer o que vêm a ser as chamadas questões políticas e dentro delas situar as políticas públicas. As questões políticas imporiam ao Poder Judiciário a escusa de julgamento? As políticas públicas necessárias para a efetivação dos direitos fundamentais sociais e dos direitos fundamentais transindiviuais constituir-se-iam em questões políticas e, por isso, estariam isentas, da sindicabilidade judicial? E, por fim, quais os desdobramentos das respostas que procuraremos construir?

A legitimidade do Poder Judiciário, assim como suas próprias limitações orgânico-estruturais não podem ser olvidadas na análise dessas questões. Há, ainda, outros questionamentos sem os quais seria difícil focar adequadamente o problema: a configuração moderna da democracia, a separação de poderes, seus limites e a possibilidade da atualização de suas estruturas e, imediatamente, a função do processo enquanto instrumento de participação popular. Essas questões serão, contudo, só levemente tangenciadas. Intentaremos, quando muito, sugerir algumas bases para o enfrentamento do tema. Preocupar-nos-á mais de perto o definir as questões políticas e o estabelecer as hipóteses em que ao Poder Judiciário é dado sindicar as políticas públicas.

2 As questões políticas e as questões meramente políticas

Norberto Bobbio assim explica o significado do termo política:

Derivado do adjetivo polis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade. (BOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, 2000, p 954).

Eduardo Bittar, de modo mais específico, destaca que

Política tem relação com os modos de organização do espaço público, objetivando o convívio social. Tem relação, também, com as formas de gerenciamento da coisa pública, dos recursos a ela ligados, com as estratégias de definição de critérios para o alcance de fins comuns, com a eleição das molas propulsoras do desenvolvimento social, com a definição de ideologias predominantes na constituição da arquitetura da sociedade. (2002, p. 27/28)

Partindo-se dessa acepção, a região política e, portanto, o conceito de questão política seria o mais amplo possível, como adverte Rui Barbosa:

Desde Marshall, no memorável aresto em que se sagrou a jurisdição dos tribunais contra o exercício inconstitucional das faculdades do governo, ou do Congresso, ficou, ao mesmo tempo, reconhecido existir no domínio desses poderes uma região impenetrável à autoridade da justiça: a região política.
Mas em que termos se deve entender o horizonte desta expressão? Adotada em sua acepção ampla, ela abrangeria no seu raio a esfera inteira da soberania constitucional, baldaria absolutamente a competência, que para o judiciário se reclama, de coibir-lhes as incursões no terreno do direito individual, reduzindo essa competência a nada. O poder executivo e o poder legislativo são órgãos políticos do regímen; política é sua origem, seu carácter, sua atividade; políticas tôdas as suas funções. A se considerar, pois, a êste aspecto a ituação desses poderes, não haveria um só de seus ato, para o qual não se pudesse reivindicar imunidade à sindicância dos tribunais; e o ascendente pretendido por êstes, como propugnáculo das garantias constitucionais contra a usurpação do chefe do Estado, ou das assembléias representativas, seria pura e simplesmente uma burla. (BARBOSA, 1962, p. 96)

É preciso fugir dessa conceituação ampla. De modo geral e tradicionalmente entendido quer pela doutrina, que pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, questões políticas são aquelas que não podem ser objeto de sindicabilidade judicial. Essa definição importa, todavia, em uma petição de princípio e assaca uma outra pergunta: quais questões que, por serem estritamente políticas, não podem ser objeto de apreciação judicial?

Rui Barbosa, na esteira da doutrina norte-americana construída a partir da célebre decisão proferida no Marbury v. Madison, posiciona-se no sentido de que as questões políticas em sentido estrito dizem com a maneira de exercitar o poder atribuído ao Executivo ou ao Legislativo, à conveniência e à oportunidade desse exercício. Destaca ainda o eminentíssimo Rui que não se pode falar em questão política em sentido estrito, ou, por outra, não se pode afastar o controle jurisdicional quando o ato político violar um direito individual constitucionalmente protegido. Sua conclusão é lapidar:

Atos políticos do Congresso, ou do executivo, na acepção em que esse qualificativo traduz exceção à competência da justiça, consideram-se aquêles, a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição prudencial do poder, e o exercício dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo.
Em prejuízo dêstes o direito constitucional não permite arbítrio a nenhum dos poderes.
Se o ato não é daqueles, que a Constituição deixou à discrição da autoridade, ou se, ainda que seja, contravém às garantias individuais, o caráter político da função esbulha do recurso reparador as pessoas agravadas.
Necessário é, em terceiro lugar, que o fato, contra que se reclama, caiba realmente na função, sob cuja autoridade se acoberta; porque esta pode ser apenas um sofisma, para dissimular o uso de poderes diferentes e proibidos.
Numa palavra:
A violação de garantias individuais, perpetrada à sombra de funções públicas, não é imune à ação dos tribunais.
A êstes compete sempre verificar se a atribuição política, invocada excepcionalmente, abrange em seus limites a faculdade exercida. [Grifos no original] (BARBOSA, 1962, p. 108)

Gérson Marques de Lima, invocando Rui Barbosa, lembra que tradicionalmente se tem sustentado não poder o Judiciário se pronunciar acerca das questões meramente políticas, também denominadas questões simples, exclusiva ou puramente políticas (2001, p. 31). Para ele

Meramente políticas são as que se resolvem com faculdades exclusivamente políticas, através de poderes unicamente políticos, mediante critério discricionário da autoridade, e cujos requisitos não podem ser atribuídos à apreciação de outro Poder. As medidas propriamente políticas são discricionárias, no sentido de pertencerem à discrição do Congresso ou do Governo a oportunidade e a conveniência de sua adoção. (Idem, ibidem)

Ao posicionamento de Rui Barbosa, o autor traz o contra-ponto de Lourival Vilanova, para quem não há distinção definitiva entre atos políticos e atos judiciais. Segundo Marques de Lima

Na sua concepção [refere-se a Lourival Vilanova], a partir do poder constituinte, portador de atos políticos em sua maior discricionariedade de meios e fins, todos os fatos políticos, no interior do ordenamento, são fatos juridicamente qualificados. Inexistem questões só políticas vestidas de juridicidade. Às vezes, acrescenta, a qualificação de questões puramente políticas é dada pelo Poder Judiciário, como preliminar, afastando o seu exame por esse: o Judiciário não deixa de verificar a questão por ser política, mas a questão é política porque ele não a aprecia. Esta estratégia tem sido uma política prudencial adotada pela Suprema Corte norte-americana, ‘para afastar-se neutralmente dos conflitos de interesses, que escapam à mera técnica de apreciar jurisdicionalmente as controvérsias’. (LIMA, 2001, p. 32-33)

De tudo isso pode-se concluir que as questões meramente políticas seriam aquelas que não podem ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário e não podem sê-lo porque estão no âmbito de discricionariedade do Poder Executivo ou do Poder Legislativo e não interferem no exercício de um direito individual. Parece-me, por isso, que o problema da possibilidade ou não de apreciação das questões políticas pelo Poder Judiciário diz muito mais com a competência, definida pelo texto constitucional, de cada um dos Poderes da República que com a natureza da controvérsia envolvida. Se a Constituição reserva um espaço de decisão à conveniência e oportunidade de um dos poderes, não pode um outro aí ingerir. Nessa vertente também se posiciona Gérson Marques de Lima, para quem

Mesmo no exercício das atribuições puramente políticas, os Poderes não podem contrariar a letra da Constituição, especialmente quanto ao processo formalizador e aos requisitos constitucionais indispensáveis para a concretização da medida. Qualquer ofensa neste sentido autorizará a sua submissão ao controle judicial. Ficam-lhe imunes apenas os aspectos da conveniência e da oportunidade, em nome da necessária separação dos Poderes; restando as demais questões políticas – intrínsecas à medida – passíveis de controle judicial. [grifo não existente no original] (LIMA, 2001, p. 33.)

3 Os Direitos Fundamentais Difusos e Coletivos

A passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o surgimento dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, os chamados direitos transindividuais, vêm dar uma nova configuração ao problema dos objetivos do Estado e da separação de poderes, e exige novas respostas.

Como aponta Rodolfo Camargo Mancuso (2001, pp .732-733), invocando a lição de Fábio Konder Comparato, no alvorecer do Estado Moderno, de índole liberal, atribuía-se proeminência ao Poder Legislativo. O Estado cumpria a sua função básica ao legislar, estabelecendo condutas comissivas ou omissivas a serem observadas coercitivamente pelos súditos. Com o advento do Estado Social, a partir da segunda metade do século XX, o Estado, além de impor-se limites negativos, impõe-se objetivos a serem alcançados em benefício de toda a coletividade. Surgem os direitos sociais ou, mais apropriadamente, os direitos transindividuais, que, a rigor, não são titulados por nenhum particular, mas por toda uma coletividade: o direito à saúde, à educação, ao meio-ambiente saudável, ao crescimento econômico etc.

Tais direitos, dentro da concepção de Rui Barbosa, estariam excluídos da sindicabilidade judicial porque, de um lado, inseridos no âmbito de discricionariedade dos Poderes Legislativo e Executivo e, de outro, não caracterizados como direitos individuais. Havemos de convir, entretanto, que essa concepção, fundida no esplendor do liberalismo, não se presta mais a responder à realidade que nos inquire. Uma certa perplexidade ante o surgimento dos chamados direitos sociais foi assim expressada por Pinto Ferreira:

Questões políticas, no entender de Marshall, são aquelas que dizem respeito à nação e não aos direitos individuais. Os norte-americanos as chamam political questions; são os actes de gouvernément dos franceses, os acts of State para os ingleses e Justizlose Hoheitsakte para os alemães.
No século XIX e princípio do século XX era fácil distinguir entre o interesse nacional e os interesses indivicuais, para saber se a questão era política. Hoje em dia a situação é mais difícil em face da progressiva tendência ao intervencionismo por parte do Estado. Uma orientação socialista dificulta ainda mais essa apreciação. (FERREIRA, 1999, p. 424)

A doutrina moderna de inspiração alemã assentou que os direitos fundamentais são normas com estrutura de princípios, que guardam uma dimensão subjetiva e outra subjetiva. Os direitos fundamentais são mandados de otimização (Optimierungsgebote). Assim também, os direitos fundamentais transindividuais. Marcelo Lima Guerra, invocando Robert Alexy, assim os explica:

Os princípios são normas dotadas de uma estrutura aberta, as quais ao invés de comandarem a realização de uma conduta específica, “ordenan que se realice algo em la mayor medida posible, em relación com las possibilidades jurídicas y fácticas”. Daí ter Alexy definido os princípios como “mandados de otimização”, caracterizados, portanto, “por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferentes grados y que la medida de su cumplimiento no sólo depende de las possibilidades reales sino también de las jurídicas”. E arremata Alexy: “El âmbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos”. (2003, pp. 84-85)

A Constituição erigiu ao status de princípio diversos objetivos políticos a serem alcançados pelo Estado. Esse princípios apresentam-se muitas vezes como direitos fundamentais ora em uma dimensão subjetiva, ora em uma dimensão objetiva. Os direitos fundamentais devem ser prestados ao cidadão em um grau ótimo, atendidas as limitações fáticas e jurídicas.

4 As políticas públicas

De tudo quanto foi dito, podemos afirmar que todas as questões relacionadas ao dever e ao fazer estatal, ao estabelecimento de rumos e metas pelo Estado, são questões políticas. Essas questões não estarão sujeitas ao controle judiciário na parte em que estejam confiadas à discricionariedade dos demais Poderes da República. Grosso modo, destaque-se de logo, a discricionariedade estará limitada pelo menos quanto aos aspectos formais da medida.

No que diz com os aspectos materiais, as medidas assumidas pelos demais Poderes da República devem guardar compatibilidade com os objetivos traçados pela Constituição. A margem de discricionariedade é, indubitavelmente, bastante ampla, mas o legislador ou o administrador estará, em última análise, jungido ao mandado constitucional de otimização.

As questões relacionadas ao direcionamento do Estado em busca de desincumbir-se dos seus fins são questões relacionadas à escolha a) dos objetivos estatais de curto, médio e longo prazos e b) das ações governamentais capazes de atingi-los. As questões políticas dizem, portanto, com a implementação de políticas públicas, sejam elas implementadas através da edição de instrumentos normativos tão-somente, sejam elas implementadas através de ações estatais propriamente ditas, por intermédio dos serviços públicos ou da intervenção do Estado na economia.

Convém destacar que os principais objetivos estatais não são objeto de escolha por quem quer que seja. Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil já estão dispostos, por obra do constituinte originário, no art. 3.º da Constituição da República Federativa do Brasil, quais sejam, I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; II) garantir o desenvolvimento nacional; III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Além desses, Willis Santiago Guerra Filho reporta-se à opção política ou fórmula política fundamental da Carta de 1988. Segundo ele

O primeiro artigo da Constituição de 88 define, assim, a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, e elenca os princípios sob os quais ela se fundamenta. Todo o restante do texto constitucional pode ser entendido como uma explicitação do conteúdo dessa fórmula política, explicitação essa que, por mais extenso que seja esse texto, ainda é e sempre será uma tarefa inconclusa, além de ser uma tarefa de primordial importância, principalmente nesse período inicial de vigência da nova Carta, em que vem sendo submetida a tantas – e, já por isso, questionáveis – reformas. (GUERRA FILHO, 2001, p. 19)

Os objetivos propostos pela Constituição da República podem, entretanto, ser atingidos por diversas vias, de acordo com variadas concepções políticas. Não há um caminho unívoco que possa ser apontado como o correto ou, ainda, opções políticas inevitáveis, a não ser as assumidas pela própria Constituição. Aliás, uma tal concepção seria frontalmente contrária ao Estado Democrático de Direito e ao pluralismo que deve presidi-lo. Esse é, como explica Andréas J. Krell, o “livre espaço de conformação” do legislador:

A constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado “livre espaço de conformação” (Ausgestaltungsspielraum). Essa função legislativa seria degradada se entendida como mera função executiva da constituição. Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante às alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe principalmente aos governos e aos parlamento. (KRELL, 2002, p. 22)

É inegável, portanto, que um amplo espaço de discricionariedade é conferido aos Poderes Executivos e Legislativos dos três níveis da federação. Mas em que ponto acaba a discricionariedade dos poderes públicos? Quando e de que maneira o cidadão pode exigir do próprio Estado o estabelecimento de uma política pública, o cumprimento de uma política pública já assumida, ou, ainda, a modificação ou a interrupção de políticas públicas contrárias aos objetivos constitucionais ou de ações estatais contrárias às políticas públicas assumidas?

Aqui há de se diferençar dois níveis de atuação governamental. Um na escolha da política pública; outro, na sua implementação. Frente a uma demanda por atendimento de saúde que afeta um bairro de uma grande cidade, por exemplo, o Poder Executivo municipal estaria obrigado a apresentar uma política pública para solucioná-lo. Seja mediante a construção de um novo hospital; seja mediante a reativação de um posto de saúde; seja mediante a transposição do atendimento para órgãos de saúde existentes em outros bairros. Esse é o primeiro dever do Estado. Uma vez apresentada a política pública escolhida, tem o Estado dever de implementá-la tal qual foi planejado.

O cidadão tem, portanto, o direito de exigir do poder público, por intermédio do Estado-juiz, que formule uma política pública para que seja implementado um certo direito fundamental. Uma vez concebida a política estatal, o cidadão tem o direito de vê-la implementada em prazo razoável. O Estado-juiz poderia, assim, determinar ao órgão público uma obrigação de fazer consistente da formulação de uma política pública razoável para a realização dos direitos, bem como, a posteriori, uma obrigação de fazer consistente na implementação da política pública formulada.

5 O papel do Poder Judiciário

Na discussão jurídica das políticas públicas, estará em jogo saber se a concretização dos direitos fundamentais pelo Estado está sendo efetivada, consideradas as limitações fáticas e jurídicas, em um patamar ótimo. O Judiciário, por óbvio, não poderá escolher as políticas a serem efetivadas. A sindicabilidade das políticas públicas pelo Poder Judiciário, além dos limites inerentes à competência constitucional de cada um dos poderes públicos – quando a constituição outorga aos representantes do povo legitimamente eleitos ou a outros órgãos estatais ampla margem de discricionariedade –, está também contida por limites técnicos, procedimentais e organizacionais do Poder Judiciário.

O Judiciário não tem como promover os mesmos debates que têm lugar no legislativo e muito raramente pode desenvolver estudos técnicos tão amplos quanto os desenvolvidos pelo executivo, além de não ter acesso à totalidade dos dados de que dispõe o administrador público. É a chamada reserva de consistência. O conceito vem da doutrina e jurisprudência norte-americanas e é assim sintetizado por Sergio Moro:

Por força do argumento democrático, já se afirmou que as interpretações judiciais exigem uma “reserva de consistência” para se sobreporem às interpretações legislativas.
Em sede de controle de inconstitucionalidade por ação, tal reserva exige que o Judiciário apresente argumentos substanciais de que o ato normativo impugnado é incompatível com a Constituição.
Se o caso for de inconstitucionalidade por omissão, não há decisão legislativa à qual o Judiciário deve sobrepor-se. Não obstante, o desenvolvimento e a efetivação da Constituição são sempre atividades que requerem cuidado, mesmo quando presente vazio legislativo, principalmente em virtude da carência de legitimidade democrática do Judiciário.
A intervenção da jurisdição constitucional depende da reunião de argumentos e elementos suficientes para demonstrar o acerto do resultado que se pretende alcançar. (MORO, 2004, p. 221)

Nada obstante, é igualmente certo que o Poder Judiciário poderá decidir acerca a) da existência ou não de uma política pública; b) da compatibilidade da política pública existente com os preceitos constitucionalmente estatuídos – ocasião em que, como já vincado, deverá deixar amplo espaço de conformação ao legislador e ao administrador; e, finalmente, c) acerca da efetiva implementação da política pública estabelecida. Pode, ainda, atuar negativamente determinando a suspensão ou interrupção de políticas que afrontem os princípios constitucionais.

Nessa quadra, sobressai a importância da Ação Civil Pública, da Ação Popular e da Ação de Improbidade. Essas ações têm muitos legitimados, o que permite a capilaridade e democratização dos debates em torno das políticas públicas, além de possibilitar um controle mais efetivo, dada a maior proximidade aos órgãos responsáveis por sua execução.

O Supremo Tribunal Federal tem papel relevante no controle das políticas públicas, mas sua atuação tem também limites evidentes. É que em sede de controle abstrato de constitucionalidade o Supremo Tribunal não determina obrigações de fazer ou não fazer. Essa circunstância esvazia em grande parte o controle concentrado de constitucionalidade das políticas publicas a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal. A não ser nos casos de omissão inconstitucional – quando os poderes púbicos têm o dever de adotar programas ou planos de ação políticos para o atingimento dos diversos fins constitucionalmente estabelecidos – e no caso da atuação como legislador negativo.

O aspecto mais importante da atuação do Poder Judiciário parece mesmo ser a atuação da primeira instância. A ampla utilização de ações civis públicas, ações de improbidade e ação populares tem contribuído para a democratização das decisões políticas tomadas pelo legislador ou pelo administrador.

O modelo da democracia representativa clássica parece estar à beira do esgotamento. As políticas públicas assumidas e desempenhas pelos poderes públicos são múltiplas e a centralização do debate acerca delas no parlamento torna impossível o seu efetivo controle pelo povo. São necessários novos instrumentos que permitam uma participação popular mais direta e provoque a publicização do debate acerca das políticas públicas. O processo civil pode funcionar como um desses instrumentos. Seja porque tem curso próximo das populações interessadas, seja porque dispõe de ações especiais, com uma multiplicidade de legitimados capazes de promover a defesa e a efetivação dos direitos fundamentais mediante o controle das políticas públicas do Estado.

6 As Leis Orçamentárias

As políticas públicas estão normalmente definidas nas Leis Orçamentárias, sobretudo no que diz com as despesas de capital. O controle das políticas públicas, ainda que as ignore, reflete inexoravelmente nas Lei Orçamentárias. Quando o Poder Judiciário propõe-se a controlar políticas públicas é inevitável que determine gastos, estejam ou não previstos na Lei Orçamentária. O § 1.º do art. 165 da Constituição da República estabelece que

§ 1.º. A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.

Já o § 2.º do mesmo artigo dispõe

§ 2.º. A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

O Superior Tribunal de Justiça vem adotando uma postura de vanguarda, seja para determinar a inclusão, na lei orçamentária, de verbas capazes de possibilitarem a implementação e execução das políticas públicas, seja determinando a própria execução de políticas públicas já disciplinadas em normas infraconstitucionais. Vale a transcrição dos seguintes acórdãos:
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO.1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas.4. Recurso especial provido.
(STJ, 2.ª T. REsp 493811/SP, rel. Ministra ELIANA CALMON (1114) DJ 15.03.2004, p. 236) ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.5. Recurso especial provido.
(STJ, 2.ª T. REsp. 429570 / GO, rel. Ministra ELIANA CALMON. DJ 22.03.2004, p. 277)

O período histórico-político que atravessamos, de elevadíssimo contingenciamento de gastos públicos para pagamento dos serviços da dívida, em detrimento das prementes necessidades sociais que se multiplicam de forma alarmante, está a reclamar da doutrina um estudo mais alentado acerca do controle orçamentário e, sobremodo, do direito à execução orçamentária. A postura de absenteísta por parte do Judiciário ainda prevalece quando a sentença é condicionada ou condiciona a execução orçamentária. Por óbvio que o Judiciário não pode ditar, ao seu talante, os gastos públicos, mas, como mostram os acórdãos da lavra da Ministra Eliana Calmon, soluções outras são possíveis.

7 Conclusão

O advento de novas categorias de direitos, nascidas do Welfare State intervencionista, no pós-guerra, diferentes dos direitos individuais subjetivos clássicos, está a exigir da doutrina e do próprio Poder Judiciário novas respostas às questões da jurisdicionalização das chamadas questões políticas e da possibilidade de controle judicial das políticas públicas.

As questões políticas derivam de direitos fundamentais, considerados em sua dimensão objetiva, os quais reclamam a efetivação de seu conteúdo em um grau ótimo, consideradas as limitações de caráter fático e jurídico. Está entre as funções do Poder Judiciário pronunciar-se acerca da razoabilidade na implementação das políticas públicas, ainda que, não estando efetivamente configurado o descumprimento do mandado de otimização, possa se valer da chamada reserva de consistência.

É possível, portanto, o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário, desde que preservado o espaço de discricionariedade dos Poderes Legislativo e Executivo, constitucionalmente estabelecido, o qual diz com a conveniência e oportunidade na escolha dos meios capazes de atingir os fins estatais definidos no texto constitucional.

Assim também, a implementação de uma dentre as muitas políticas públicas possíveis para a concretização dos objetivos estatais fixados nos direitos fundamentais é um imperativo constitucional, alheio à discricionariedade. O Poder Judiciário poderá, por isso, determinar uma obrigação de fazer contra o Estado ainda que a escolha da medida fique a critério do seu executor. E, uma vez escolhido o meio, a execução da medida é também devida e passível de controle judicial.

A complexidade da sociedade pós-moderna reclama espaço para o exercício da democracia no âmbito do Poder Judiciário, servindo o processo civil como instrumento de controle das decisões tomadas pelos representantes do povo. A centralização das decisões políticas no parlamento e a multiplicidade das políticas públicas que são todos os dias definidas torna impossível o seu efetivo controle no âmbito do próprio parlamento.



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sábado, 18 de agosto de 2007

Newton Pereira Ramos Neto* - Políticas Públicas e Atuação Jurisdicional


Políticas Públicas e Atuação Jurisdicional

* Juiz Federal Substituto da Seção Judiciária do Maranhão. Professor da UNDB. Pós-Graduado em Direito do Estado pelo CEPEJUR/Estácio de Sá

1. INTRODUÇÃO

Já se tornou corriqueira, no meio acadêmico, a discussão afeta aos limites e possibilidades do controle jurisdicional sobre os atos administrativos, muito embora tal assertiva não prejudique a constatação de que a análise da matéria encontra-se em franco processo evolutivo, na medida em que se vem reconhecendo uma ampliação da tutela do Judiciário sobre tais atos como mecanismo de efetiva implantação do Estado Democrático de Direito.

Todavia, no momento atual, tema que se tem tornado candente nestas mesmas searas de debate é aquele relativo à atuação do Poder Judiciário frente às políticas públicas a serem levadas a cabo pela Administração Pública.

Basicamente, a problemática em tela é decorrência da onda revolucionária do Estado Social, geradora da adoção do chamado Constitucionalismo Dirigente pelas Democracias Modernas, com o lógico alargamento das competências do Poder Executivo a partir da reconstrução do Estado sob a perspectiva de um modelo prestacional de conduta.

No caso do Brasil, a discussão encontra terreno propício notadamente a partir do advento da Constituição da República de 1988, que consagrou extenso rol de direitos individuais e sociais, além de prever diversos instrumentos processuais voltados à tutela dos direitos individuais e coletivos. Nessas condições, no afã de tornar realidade as garantias previstas na novel Constituição, cuja responsabilidade, em último plano, cabe ao Poder Judiciário, diante da omissão dos demais poderes, passa aquele Poder, de quando em vez, a necessitar imiscuir-se na esfera de implementação de políticas públicas a fim de aquilatar a efetiva observância das promessas constitucionais.

Por outro lado, como já tivemos oportunidade de ressaltar em trabalho anterior[1], um paralelo traçado entre o caráter compromissório da Constituição Federal e o perfil de atuação política do Poder Público a partir principalmente da década passada revela quão paradoxal passou a ser a atuação do Estado nas relações sociais. É que, enquanto a Constituição Brasileira institui normas de conduta positiva ao Poder Público, a diretriz governamental tende a um desmantelamento desse perfil coletivista constitucionalmente estabelecido. As atividades antes consideradas essencialmente públicas são agora transplantadas para a iniciativa privada. A atuação estatal, em síntese, impõe uma subordinação do social ao econômico, priorizando algumas áreas de atuação em detrimento de outras diretamente ligadas a problemas atrelados a nossa realidade, o que evidentemente gera um déficit no cumprimento da prestação social a cargo do Poder Público.

Assim, se maior é hoje o leque de competências interventivas do Estado Administração – há quem fale na substituição do “governo de leis” pelo “governo de políticas públicas” -, maior é evidentemente a necessidade de exame dos limites de atuação do Poder Judiciário em relação a políticas públicas não realizadas ou realizadas de modo divorciado das cláusulas compromissórias inseridas na Carta Magna.

Daí a importância do desenvolvimento do presente tema, lembrando-se apenas que, com estas breves linhas, não se tem a pretensão de esgotar a matéria, mas somente lançar luzes sobre temática tão atual e fascinante, de forma a levar o leitor a uma reflexão madura sobre a importância do Poder Judiciário na proteção e concretização dos interesses maiores da sociedade.

2. A CONSTITUIÇÃO ENQUANTO LEI FUNDAMENTAL

Nos tempos atuais, o Direito Constitucional vem ampliando sua importância como elemento de coesão do ordenamento, na medida em que, num Estado de caráter intervencionista e de sociedade pluralista, apresenta-se imprescindível a estruturação de um plexo normativo que assegure a organização desse próprio Estado e dos interesses maiores da coletividade.

Contudo, toda essa evolução requer uma breve análise de cada momento histórico vivido pelas Constituições, cada função exercida por estas em face da conjuntura sócio-política em que inseridas, para que possamos compreender qual o papel da norma constitucional na sociedade moderna, notadamente seu valor enquanto meio jurídico de garantia dos interesses coletivos. Isto porque, parafraseando KONRAD HESSE, o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas - ordenação e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco.[2]

Situando-nos a partir dos movimentos liberais do século XVIII, podemos dizer que as Constituições, nessa fase, adquirem um matiz de instrumento voltado essencialmente para a atividade do Estado, como técnica de organização do poder, engendradas por outro lado, também, como garantia da liberdade de atuação individual.

Por sua vez, os direitos individuais garantidos nestas primeiras Constituições Liberais não passaram de meras declarações de princípios anexos ao texto constitucional propriamente dito e de acentuada generalização[3], donde surgir também a impossibilidade da norma de status constitucional, neste período, ser invocada como fundamento de uma pretensão do indivíduo, razão pela qual era reduzida a importância que se lhe atribuía no contexto social.

O problema maior era que, no momento em que se vislumbrava na norma constitucional elemento apenas de organização do poder, perdendo a mesma em relevância no meio social, uma vez que não vivenciada no cotidiano das relações humanas, passava-se a atribuir também ínfima juridicidade a seus preceitos. Neste passo, ressalta PAULO BONAVIDES que

"A corrente de publicistas presos a esse entendimento reduziu conseqüentemente sua visão interpretativa das Declarações à identificação nelas de um mero conjunto de princípios gerais e abstratos, desprovidos de natureza jurídica, sem eficácia vinculante, de aplicabilidade duvidosa ou impossível; princípios meramente éticos, aptos quando muito a inspirar o legislador segundo diretrizes ideológicas, mas de modo algum idôneos a obrigar os cidadãos ou órgãos estatais."[4]


Sob a ótica acima vista, observa-se que, no período de surgimento do Estado Liberal, pouca ou nenhuma força normativa se reconhecia aos textos constitucionais, situação essa que só vem a modificar-se no momento de consolidação dos ideais liberais, em que, transplantando-se para o texto da Constituição na forma de artigos as declarações de direitos, atribui-se maior normatividade ao conteúdo das Constituições como um todo.[5]

Contudo, a derrocada do Estado Liberal impôs nova crise ao conceito jurídico de Constituição. Isto porque se utiliza o constituinte do Estado Social de cláusulas que pretendem consagrar os compromissos e as diretrizes do Poder Público com a implementação de interesses sociais, enunciando-se, através de fórmulas programáticas, direitos sociais relativos ao trabalho, à educação, entre outros, cujo grau de abstração dificultava sobremaneira sua redução a direitos públicos subjetivos.

Assim, é exatamente a característica de programaticidade das Constituições que mais uma vez traz à baila as dissensões acerca da juridicidade das normas constitucionais, levando a uma nova crise no sentimento de obrigatoriedade da norma constitucional.

Como lembra BONAVIDES, os constitucionalistas do positivismo prevalecente até o início do século XX intentavam criar uma verdadeira separação entre o jurídico e o programático, atribuindo a este último expressões de juízo negativo como "admoestações morais", "boas intenções" etc., tudo como forma de negar valor normativo aos preceitos enunciadores de objetivos do Estado.[6] Utilizava-se dessa tese, em verdade, para afastar do campo da obrigatoriedade qualquer norma considerada incômoda, uma vez que, para não aplicá-la, era necessário somente tachá-la de programática.[7]

Todavia, a abertura feita aos direitos sociais a partir do estabelecimento de normas programáticas não pode ter o condão de retirar do conteúdo do Pacto Fundamental seu valor vinculante. Isto porque a Constituição espelha hodiernamente o momento de reestruturação das relações políticas e sociais de um dado povo, tarefa essa que pressupõe uma atribuição à norma constitucional de elevado valor normativo, sob pena de impossibilitar-se a organização do Estado e a harmonização dos interesses dos grupos sociais.[8]

Desse modo, a Constituição representa, hoje, norma dirigida ao Estado e à sociedade, posto que regula o exercício do poder, mas também impõe um vetor de atuação positiva do Estado na ordem social. Opera, assim, força normativa em caráter absoluto e, independentemente do grau de sua aplicabilidade no plano material, sempre vincula o Estado, permitindo, ainda, aos cidadãos, via de regra, um acesso direto à norma constitucional como meio de tutela contra o arbítrio ou a omissão dos poderes públicos.

Lúcidas, neste passo, as palavras de BONAVIDES: "Reconstruir o conceito jurídico de Constituição, inculcar a compreensão da Constituição como lei ou como conjunto de leis, de sorte que tudo no texto constitucional tenha valor normativo, é a difícil tarefa que se depara à boa doutrina constitucional de nosso tempo."[9]

A seu turno, vejamos as ricas ponderações de VITAL MOREIRA e CANOTILHO, para quem, atualmente

"(...) encontra-se superada a idéia da Constituição como um simples concentrado de princípios políticos, cuja eficácia era a de simples directivas que o legislador ia concretizando de forma mais ou menos discricionária. Não se questiona, pois, a juridicidade, vinculatividade e actualidade das normas constitucionais. Isso não impede naturalmente que se deva clarificar a tipologia das normas constitucionais e pontualizar sua função e eficácia no contexto global da Constituição, pois é claro que nem todas as normas constitucionais têm a mesma natureza, estrutura e função, sendo variável a intensidade de sua força conformadora imediata. Todas elas, porém, possuem uma eficácia normativa, seja como direito actual directamente regulador de relações jurídicas (exemplo: normas consagradoras de direitos fundamentais), seja como elementos essenciais de interpretação e de integração de outras normas (exemplo: normas consagradoras de princípios políticos). A Constituição é, pois, um complexo normativo ao qual deve ser assinalada a função verdadeira de lei superior do Estado, que todos os órgãos vincula."[10]


Por outro lado, no que tange à supremacia constitucional, como lembra CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, esta não possui força de isoladamente garantir o respeito às Constituições enquanto norma fundamental. Deveras, mister se faz haja no seio social uma "conscientização constitucional", de modo a estabelecer-se um sentimento de respeito à norma suprema como alicerce do Estado de Direito. [11]

Fala HESSE, assim, numa "vontade de Constituição", como elemento garantidor da supremacia da norma constitucional. Para ele, "a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição. "[12] Essa vontade de Constituição originar-se-ia, em suma, da compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, bem como de que sua eficácia depende do concurso da vontade humana, ou seja, do interesse social prioritário no cumprimento da norma constitucional.[13]

Conclui-se, portanto, que todas as normas constitucionais, inclusive as programáticas – veiculadoras das políticas públicas a serem implementadas -, possuem um carga jurídica vinculante e estão no patamar máximo de estruturação do plexo normativo, razão pela qual jungem o Estado a seu efetivo cumprimento, devendo o ordenamento jurídico possuir mecanismos de exigibilidade dessa obrigação, com a previsão de órgãos dotados de prerrogativas de tutela do efetivo cumprimento do texto constitucional.

3. O PERFIL ATUAL DO PODER JUDICIÁRIO ENQUANTO GARANTIDOR DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL E DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Analisada a questão da supremacia constitucional e da necessidade de efetiva implementação das promessas inseridas na Lei Maior, impende tecer-se breves comentários acerca do papel do Poder Judiciário moderno como partícipe do processo de realização da Constituição.

A partir do exame da estrutura das Constituições modernas, observa-se que o sistema de controle judicial de constitucionalidade engendrado busca essencialmente atribuir ao Poder Judiciário a função de órgão assegurador do cumprimento da vontade constitucional[14], tanto na perspectiva da estrita observância dos direitos fundamentais, quanto da implementação dos programas sociais normativamente previstos.

E é exatamente em virtude da função atribuída ao Poder Judiciário, como desaguadouro final das angústias sociais e última instância de guarda da Constituição, que se tem evoluído, em doutrina, a fim de admitir-se um papel mais ativo ao julgador no controle das ações do Poder Público.

Nesse contexto, fala-se, modernamente, na jurisdição examinada sob uma perspectiva instrumentalista, de modo que o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional não pode mais ser entendido como mera garantia da “ação”, mas como tutela do próprio direito vindicado, como meio de condução a uma ordem jurídica justa e efetiva. É dizer, o papel do Judiciário se expande a fim de permitir-se a efetiva vivência das garantias constitucionais no seio social, não se concebendo mais o mero asseguramento do direito sob a ótica eminentemente formal.

Tal aspecto, outrossim, importa em verdadeira universalização da jurisdição, sendo que a minimização dos resíduos conflituosos “não jurisdicionalizáveis” possibilita hoje, por exemplo, no que tange às atividades concretas do Poder Público, uma maior extensão do controle dos atos administrativos, com exame de aspectos antes considerados “mérito” do ato e, portanto, insindicáveis.

A isto se soma, a partir de inspiração da doutrina alemã, a constante aplicação do princípio da proporcionalidade no exame da legitimidade dos atos do Poder Público, de forma a verificar-se a compatibilidade entre os meios empregados pelo administrador e os fins visados, o que, no direito norte-americano, encontrou aplicação através da clausula do substantive due process of law.

Todas essas observações levam a uma constatação: o papel do julgador moderno deve ser o de preservar os direitos do cidadão de modo intransigente, sempre que a tutela desse direito possa ser realizada dentro do seu campo de atribuições. Não se concebe, hodiernamente, um magistrado estático, qual Pilatos. É dizer, um magistrado alheio às injustiças sociais e com uma visão meramente formalista da prestação jurisdicional.

A ótica acima vista do perfil atual do magistrado, de outro giro, leva a uma outra conclusão: afigura-se incabível exigir-se neutralidade dos juízes na guarda e implementação de valores e princípios tão abstratos e carentes de significação como são a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (art. 1°, III, e 3°, I e III, da CF).[15]

Com propriedade, assevera COUTURE:

“Podremos decir que el juez es solamente ‘la voz que pronuncia las palabras de la ley’? Podremos decir que es ‘un ser inanimado’? Me parece que no. En todo caso, esa concepción representa un exceso de lógica formal, a expensas de la lógica viva. El juez no puede ser un signo matemático, porque es um hombre; el juez no puede ser la boca que pronuncia las palabreas de la ley, porque la ley no tiene la posibilidad material de pronunciar todas las palabras del derecho; la ley procede sobre la base de ciertas simplificaciones esquemáticas y la vida presenta diariamente problemas que no han podido entrar em la imaginación del legislador... (...) El día que los jueces tienen miedo, ningún ciudadano puede dormir tranquilo. El sentido profundo y entrañable del derecho no puede ser desatendido ni desobedecido y las sentencias valdrán lo que valgan los hombres que las dicten.”[16]


Partindo dessa premissa, conclui o juiz argentino RODOLFO CAPÓN FILAS que “todo esto importa porque la intención del sistema judicial es hallar um equilibrio entre libertad y autoridad, entre calidad profesional y poder. No se puede olvidar que la justicia se relaciona com la polìtica, pareja de compleja convivencia el la dignidad.”[17]

Portanto, a era do pós-positivismo, porque súdita de um Constitucionalismo reaproximador do Direito e da Justiça e refratária de um legalismo acrítico, traz à tona valores como a razoabilidade, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a normatividade dos princípios, enfim, a efetivação dos direitos fundamentais, sempre. E é dentro dessa perspectiva que se deve conduzir o “novo” julgador.


3. O CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO FORMA DE REALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Via de regra, objeta-se a possibilidade de interferência do Judiciário nas políticas públicas estatais em virtude da potencial violação do dogma da separação de poderes.

Entrementes, deve-se acentuar que o princípio da separação dos poderes, tal como concebido tradicionalmente, sustentava-se como sistema de balanceamento entre as funções estatais, de modo a garantir a liberdade individual, nos termos concebido pelo ideal liberal. Partia-se de premissas distintas daquelas que acalentaram a formação do Welfare State, que concebe o Estado como prestador de serviços e exige, em conseqüência, um controle do adimplemento da obrigação estatal.

É óbvio que, na moldura tradicional do esquema de separação de poderes, não há sustentação para a tese da judicialização da política, isto é, a interferência do Judiciário nas questões a cargo do Executivo, até porque ao Estado não cabia o papel de veicular amplas mutações sociais, de modo a tornar despiciendo qualquer controle desse papel, se o mesmo era, em verdade, inexistente.

Todavia, a partir da concepção contemporânea de um Estado prestacional, em que se atribui ao Executivo uma séria de obrigações de conteúdo positivo, nas áreas educacional, assistencial etc., exige-se um remodelamento do princípio da separação de poderes[18], de modo a permitir a existência de um instrumental efetivo de controle da inação do Poder Público. E é aí que entra o Poder Judiciário.

Assim, tal princípio requer hodierna interpretação condizente com a hipertrofia do Executivo, ou seja, a ampliação da zona de atuação deste Poder, decorrente, aliás, tanto da gama de atividades a ele incumbidas pelas Constituições modernas, como acima visto, quanto da inoperância do Legislativo no exercício de sua competência típica, acarretadora da contínua atividade legiferante exercida pelo Executivo, a qual, segundo a sistemática do Constituinte, deveria ocorrer apenas de modo excepcional.

Por seu turno, voltando à questão do ativismo judicial – o qual está umbilicalmente ligado ao controle jurisdicional de políticas públicas -, verifica-se que, no direito norte-americano, os adeptos do Originalismo combatem com veemência esse modelo de condução da atividade judicante. Argumenta-se que as construções jurídicas desenvolvidas pelo Poder Judiciário encontram óbice intransponível na estrutura inerente aos países democráticos, em que deve prevalecer a vontade da maioria, no caso representada pelas ações do Legislativo e Executivo. Desse modo, o controle jurisdicional teria feição contramajoritária (countermajoritarian difficulty), legitimando-se apenas nos lindes expressos do texto constitucional.[19]

Recorde-se, todavia, que a Constituição moderna, como já dito alhures, é essencialmente compromissória, atribuindo prioritariamente ao Executivo e ao Legislativo, através de ações concretas e normativas, respectivamente, o dever de realizar as políticas voltadas ao bem-estar social. E, evidentemente, ao Poder Judiciário deve ser reservado algum papel, no caso exatamente o de garantir ao cidadão, em caráter secundário, que o dever do Estado a ser exercido através dos agentes com representatividade política seja efetivamente cumprido.

Necessário, outrossim, ter-se a percepção clara de que o exercente de função tem não apenas um poder, mas, acima de tudo, um dever de alcançar a finalidade das leis e prioritariamente da Constituição. Assim, nas competências públicas, a quantidade de poder outorgado é pura e simplesmente a contraface do dever a ser cumprido, isto é, uma vicissitude deste dever. Logo, coincide ontologicamente com o suficiente e indispensável para dar cumprimento ao dever de bem suprir o interesse em vista do qual foi conferida a competência. A omissão ou o excesso configuram um extravasamento dos limites da atividade, ensejando pronta fulminação pelo órgão legitimado constitucionalmente a exercer este mister de controle.[20]

Nesse contexto, o Poder Judiciário constitui o termômetro na análise do equilíbrio e tensões entre os Poderes no cumprimento de seus misteres e obviamente tal missão não pode ser exercida sem certa carga axiológica. Daí resultar a necessidade do ativismo judicial, vez que cabe ao Judiciário controlar a condução das atividades do Executivo e do Legislativo tanto sob o prisma positivo quanto negativo, isto é, coibindo ora os abusos quando do extrapolamento de suas competências, ora as omissões na efetivação das políticas públicas expressas na Carta Magna Pátria, de modo a assegurar efetivamente as promessas constitucionais relativas à saúde, emprego, bem-estar social etc.

Conclui-se, pois, que o princípio da separação dos poderes e o princípio majoritário não são óbices ao reconhecimento da função positiva do Judiciário no controle das políticas públicas. A uma, porque a separação de poderes tem apenas conotação de garantia do indivíduo, no sentido de permitir-se a desconcentração de poder e evitar-se o abuso no exercício do mesmo. A duas, porque o princípio majoritário é tão-somente instrumento de participação política do cidadão na vida do país, o que não impede a legitimidade do Judiciário para atuar em questões de tal natureza, porque tal legitimidade provém da própria Constituição.[21]

Quanto as limites impostos pela reserva do possível, que para alguns seria também obstáculo à função do Judiciário no controle das políticas públicas, há que se ressaltar o fato de, como agente político, também se exigir do julgador cautela e razoabilidade na condução de seu mister.

Não se pode negar, também, o risco que existe do uso do arbítrio em situações isoladas, porém tal risco não é privilégio decorrente da atividade dos juízes, vez que ele também existe na atividade dos outros Poderes, como comumente tem a história demonstrado. Porém, em favor do Judiciário, pesa primacialmente a necessidade de adoção de um juízo técnico relativo à conformação da atividade judicante aos princípios e normas constitucionais e o sistema de controle recursal, o que minora o grau de subjetivismo dos julgamentos e o risco de decisões divorciadas da realidade econômica do país. Por outro lado, entre o engessamento da atividade jurisdicional sob o pálio do risco da arbitrariedade e a libertação do espaço político de atuação do julgador como forma de permitir a realização dos mandamentos constitucionais, é preferível ficar-se com a segunda opção no sopeso dos valores em confronto.

Tal entendimento, outrossim, não superlativa as atribuições do Judiciário, tornando-o um poder acima de outros poderes, mas sim assegura a supremacia da Constituição, a qual estão adstritas todas as vertentes funcionais do Estado.

Já em juízo conclusivo do trabalho, podemos dizer que a definição moderna da Constituição como instrumento promotor de uma justiça substancial exige do Judiciário o exercício do controle do cumprimento dos dispositivos ali inseridos. Nessa senda, a visão do Judiciário como dotado da prerrogativa de controle das políticas públicas, antes de constituir qualquer sinal de invasão na reserva de atribuições de outros Poderes, significa estrita observância do seu papel de guardião da Constituição e mecanismo de garantia da força normativa deste diploma fundamental.

5. CONCLUSÃO

A norma constitucional não mais significa espaço de aspirações políticas como em tempos imemoriais, quando era utilizada como instrumento de retórica ou de justificação das diretrizes de diversos governos ilegítimos. Ao revés, a norma constitucional deve ser atualmente alçada à categoria de regra de conformação da atividade do Poder Público, como forma de garantia da implementação dos interesses sociais, dotada, assim, de plena imperatividade.

Em suma, como magistralmente averba CLÈVE, "a compreensão da Constituição como norma, aliás norma dotada de superior hierarquia; a aceitação de que tudo que nela reside constitui norma jurídica, não havendo lugar para lembretes, avisos, conselhos ou regras morais; por fim, a compreensão de que o cidadão tem acesso à Constituição, razão pela qual o Legislativo não é o seu único intérprete, são indispensáveis para a satisfação da supremacia constitucional."[22]

E na tarefa de efetivação do texto constitucional, o Poder Judiciário exerce papel ímpar, constituindo a última via de aspiração do povo, podendo e devendo intervir nas políticas públicas, com a dose adequada de razoabilidade, a fim de permitir a materialização de todas as promessas eleitas pelo legislador constituinte como fatores necessários a uma efetiva estabilidade social.

Conclui-se, destarte, que todas as potencialidades da Carta Magna, com seu evidente avanço em busca da solução das desigualdades sociais, impõe ao julgador o esgotamento de todo o espectro interpretativo do texto constitucional, de modo a coibir o desvirtuamento do Poder Público diante das diretrizes de sua atividade, tornando viva a função jurisdicional no implemento das garantias do cidadão.

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*Juiz Federal Substituto em Caxias/MA. Professor do UNICEUMA (licenciado). Especialista em Direito do Estado pelo CEPEJUR/Estácio de Sá.
[1] RAMOS NETO, Newton Pereira. Apontamentos sobre a problemática da inconstitucionalidade por omissão no Brasil. In: Revista do Ministério Público do Estado do Maranhão - Juris Itinera, São Luís, n. 09, p. 189-210. 2002.
[2] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris ed., 1991, p. 13. Tradução de: Die normative Kraft der Verfassung.
[3] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas S.A ed., 1991, p. 56. Apud: CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 18.

[4]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 202.
[5] Cf. Id. Ibid., p. 205.
[6]BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 218.
[7] Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 136.
[8]Como já prelecionava RUI BARBOSA no início do século passado, "não há, numa Constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos.". Comentários à Constituição Federal Brasileira. v. II. São Paulo: 1933, p. 439. Apud: BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 211.
[9]Id. Ibid., p. 210.
[10]MOREIRA, Vital. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra ed., 1991, p. 43. Apud: CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito Brasileiro. p. 22.
[11]CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. cit., p. 26.
[12] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. p. 19-20.
[13] Id. Ibid.
[14] No caso do Brasil, como é cediço, o sistema de controle de constitucionalidade pode ser considerado um dos mais evoluídos do mundo, vez que se adota entre nós um mecanismo onde se fundem os modelos concentrado-principal, de origem européia, e difuso-incidental, de origem norte-americana, evidentemente ampliando as possibilidades de efetivação da Constituição.
[15] CAMBI. Eduardo. Critério da transcedência para a admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, § 3°, da CF): entre a autocontenção e o ativismo do STF no contexto da legitimação democrática da jurisdição constitucional. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al (coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 155.
[16]Introducción al estudio del proceso civil. Depalma, Bs. As., 1949, p 69. Apud: FILAS, Rodolfo Capón. Desde donde, em donde y para qué juzga el juez. In: Cidadania e Justiça – Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. São Paulo. Ano 05, n. 12, p. 48-57, 2° semestre/2002.
[17]Justicia y política, en Criterio, julio 2001, p. 337. Apud: idem.
[18] Karl Loewenstein, em obra publicada no ano de 1957 (Political Power and the Governmental Process), propôs a releitura do critério de separação de poderes, a fim de que a nova tripartição fosse baseada nas atividades de policy determination, policy executation e policy control. Vê-se, pois, que, a partir dessa classificação, o ponto de partida para a distribuição de funções estatais seria não mais a lei e o papel do Estado diante da mesma (elaboração, cumprimento e fiscalização), mas sim as políticas públicas, cabendo ao Judiciário, evidentemente, a função de controle destas últimas. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade das Políticas Públicas. In: Interesse Público. n. 16, 2002, p. 56.
[19] Cf. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 114-115.
[20]Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Problemas do Direito Administrativo. In: JurisSíntese - legislação e jurisprudência. Porto Alegre: Síntese ed., 2001, nº 29, mai/jun, 2001. CD ROM.
[21] Cf. CAMBI, Eduardo. Op. Cit. p. 153-165.
[22]CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. cit., p. 27.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Nelson Loureiro dos Santos* - Juizados Especiais Federais Cíveis: Incompetência por Complexidade Probatória



Juizados Especiais Federais Cíveis: Incompetência por Complexidade Probatória


*Juiz Federal Titular da 7ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão - Coordenador do Juizado Especial Federal do Maranhão

INTRODUÇÃO

Dentre as críticas, justas e injustas, tecidas contra o Poder Judiciário, uma das principais volta-se à cantada e decantada morosidade na solução dos litígios.

No dizer de Joel Dias Figueira Jr. “É propriamente nos fatores tempo x rapidez que o jurisdicionado defronta-se com o maior obstáculo à consecução de suas pretensões, porquanto é esse talvez o principal ponto de estrangulamento do Poder Judiciário brasileiro (seja em âmbito federal ou estadual).” [1]

Lamentavelmente, de fato existe muita demora na distribuição da justiça, chegando, no mais das vezes, às raias do insuportável, o que causa dissabores e prejuízos aos jurisdicionados. Afinal, há muito já dizia Rui Barbosa que justiça tardia não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta.[2]

Para consignar sua preocupação com o fato, recentemente o legislador da denominada Reforma do Judiciário, Emenda Constitucional n. 45, acrescentou expressa norma programática indicando ser direito dos cidadãos a razoável duração dos processos judiciais e os meios que garantam a celeridade da tramitação (inciso LXXVIII do art. 5º).

No campo prático, com o objetivo de minimizar os efeitos deletérios da enorme demora na tramitação processual, além de facilitar o acesso a todos os cidadãos, a partir do início da década de oitenta do século passado observa-se movimento que deságua na criação e instalação dos chamados Tribunais de Pequenas Causas, os quais, através de procedimento próprio, simplificado e ágil, procuravam solucionar os litígios em espaço de tempo considerado razoável, muito mais reduzido que aquele dos feitos em curso nas varas ordinárias.

Pode-se notar, na citada evolução procedimental, verdadeira mudança de paradigmas que vem ocorrendo no campo do Direito em geral - e do Direito Administrativo, em particular -, como explicitado por João Batista Gomes Moreira, que aduz, adequadamente ao assunto aqui tratado, que “Para dar curso às novas tendências é preciso desobstruir canais, superar obstáculos e afastar preconceitos”.[3]

Promulgada a Constituição Federal vigente, que previu expressamente a existência dos Juizados Especiais em seu artigo 98, por evolução legislativa que homenageia aqueles atributos listados pelo Administrativista antes referido, adveio em 1995 a Lei 9.099 para tratar especificamente do funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça dos Estados federados.

Para atingir a necessária rapidez processual na tramitação dos feitos ingressados nos Juizados Especiais, que devem, no dizer do constituinte, seguir rito oral e sumaríssimo na apreciação de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, o legislador ordinário estabeleceu como critérios orientadores a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, conforme art. 2º da Lei de 1995.

Inaugurada, portanto, nova modalidade de distribuição de justiça. Revolucionária em seus termos, sem apegos desnecessários às formalidades sedimentadas e defendidas pela processualística tradicional, valoriza ao extremo o princípio da instrumentalidade das formas como trilho seguro na superação do mal resultante do retardamento nas respostas aos anseios dos jurisdicionados.

Os meios para alcance desse nobre fim, é bom que se repita, encontram-se nos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade e economia processual, todos direcionados ao julgamento célere das causas de menor complexidade.

INSTITUIÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAIS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL

A idéia dos Juizados Especiais no seio da Justiça Estadual foi devidamente sedimentada ao longo do tempo, consolidando sua prática, com amplo sucesso, em todas as sedes de comarcas.

No entanto, ressentia-se, no âmbito da Justiça Federal, de modalidade procedimental que pudesse trazer agilidade à tramitação processual, olhos postos naqueles critérios orientadores já lembrados, quais sejam, oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, com especial destaque à conciliação entre os litigantes.

Além de outros aspectos, o fato de a maioria dos litígios que tramitam na Justiça Federal sempre e necessariamente conterem órgão público federal em um dos pólos, o que acarretava grande dificuldade na superação do vetusto entendimento de que estando em jogo interesses públicos não seria admissível a possibilidade transacional – uma das vigas mestras dos Juizados Especiais -, aliado ao visível desinteresse do Governo Federal na rápida solução das demandas em que figure como réu – lembrando, uma vez mais, que a rapidez na solução dos litígios é o objetivo maior dos Juizados Especiais -, sempre consistiram obstáculos importantes a impedir a extensão dessa inovadora modalidade procedimental à Justiça Federal.

No entanto, pressões sociais diversas, especialmente advindas dos próprios juizes federais, por seus Tribunais e Associações de classe, sequiosos de expandir aos seus jurisdicionados os benefícios verificados nas experiências estaduais, finalmente convenceram-se as instâncias do Executivo e do Legislativo federais, propiciando o suporte legal para final instalação e funcionamento dos Juizados Especiais Federais.

Assim que, pela Emenda Constitucional n. 22, de 18/03/99, foi acrescentado parágrafo único (renumerado pela Emenda Constitucional n. 45/04) ao art. 98 da Carta Magna, determinando que “Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal”.

Dando cumprimento à determinação constitucional, foi editada, em 12 de julho de 2001, a Lei 10.259, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, regulamentando seu funcionamento. Já no art. 1º dessa Lei ficou consignado que são aplicáveis no âmbito federal as regras não conflitantes previstas na regulamentação de funcionamento dos Juizados Estaduais e contidas na Lei 9.099/95.

COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CÍVEIS

Antes de tudo, atento que ao interpretar a Constituição não “se deve partir do pressuposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica”[4], necessário lembrar, sem medo de cometer erro, que a lei federal referida no parágrafo do art. 98 da Constituição Federal deve submissão aos termos do caput desse mesmo artigo, segundo o qual os juizados especiais criados serão competentes para a conciliação, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade.

Afinal, conforme regra assentada de hermenêutica, o conteúdo de parágrafo submete-se integralmente à cabeça do artigo ao qual vinculado, configurando-se, inclusive, regra expressa a ser observada na elaboração de leis (art. 11, III, c, da Lei Complementar 95/98, que determina “expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”).

Assim, a Lei 10.259/01, excepcionando algumas matérias em seu § 1º, dispôs no art. 3º que “Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças”.

Seria de perquirir, então, se o legislador ordinário, não se referindo expressamente à restrição da competência às causas de menor complexidade, realmente desejou reduzir esse conceito (causas de menor complexidade), conforme previsto na Constituição, àquelas cujo conteúdo econômico correspondesse ao valor de sessenta salários mínimos.

Além da impossibilidade técnica dessa equiparação em razão da incompatível vinculação do conceito de simplicidade a fator meramente econômico, a interpretação sistemática da legislação aplicável leva à conclusão de que o legislador ordinário, contrariamente ao questionamento anterior, não se utilizou do critério de equiparação ventilado, respeitando, por conseguinte, a norma constitucional vinculante.

Com efeito, a legislação ordinária, tanto a Lei 10.259/01 quanto a Lei 9.099/95, aplicável no âmbito dos Juizados Especiais Federais por força do art. 1º da norma específica, afastam do âmbito de competência da justiça especializada, como o fez o constituinte, as causas complexas.

CAUSAS COMPLEXAS – ALCANCE DA EXPRESSÃO

Não resta nenhuma dúvida que a definição do que seja ou não complexo insere-se no campo subjetivo de avaliação do sujeito que examina o caso. Assunto complexo para um poderá não sê-lo para outro, e vice-versa.

Só que, tendo o constituinte alçado tal condição como fator determinante do limite de competência dos Juizados Especiais, obviamente que se há de buscar, na legislação aplicável, critérios, os mais objetivos possíveis, para a delimitação.

Nesse norte, respeitado o rol de demandas expressamente excepcionadas pelo legislador ordinário, evidente que a complexidade das causas não pode ser jurídica, no sentido de dificultosa aplicação do conjunto de normas a que se subsume o caso concreto, mas, isto sim, reduz-se o rol à complexidade probatória, justamente por ser esta a que compromete definitivamente o andamento expedito dos feitos na sede especial.

E no contexto da complexidade probatória, como único elemento objetivo de distinção, já que, tal como na complexidade jurídica, não se vê, por exemplo, ato complexo na colheita de depoimentos (até porque o critério da oralidade é um dos que impera no subsistema tratado), resta-nos concluir pelas demandas que exigem produção de prova pericial, como previsto nos arts. 420 e seguintes do Código de Processo Civil.

JUIZADOS ESPECIAIS – INCOMPATIBILIDADE COM A REALIZAÇÃO DE PERÍCIAS TÉCNICAS COMPLEXAS

No particular, dispõe a Lei 10.259/01 que “Para efetuar o exame técnico necessário à conciliação ou ao julgamento da causa, o Juiz nomeará pessoa habilitada, que apresentará o laudo até cinco dias antes da audiência, independentemente de intimação das partes” (art. 12). Como se nota, admite-se nos Juizados Especiais Federais a realização de exame técnico para solução da controvérsia.

Vê-se claramente, no entanto, pela própria redação do dispositivo, que não se trata da tradicional prova técnica pericial prevista no Código de Processo Civil, dado que vinculado diretamente, tal exame, ao critério da simplicidade.

De seu lado, a Lei 9.099/95, também aplicável aos Juizados Especiais Federais por força do art. 1º da Lei 10.259/01, é mais incisiva ainda quanto à impossibilidade de nomeação de perito nos moldes do Estatuto Processual, ao prever em seu art. 35 que quando a prova dos fatos articulados exigir, o juiz, em audiência, poderá inquirir técnico de sua confiança para solução da matéria, resolvendo-se a dúvida, portanto, além da simplicidade, pelo critério da oralidade.

Ainda para comprovar definitivamente a impossibilidade de realização de trabalho pericial complexo em sede de Juizado Especial Federal, basta verificar que o § 1º do já referido art. 12 da Lei 10.259/01, determina que os honorários do profissional nomeado para realizar o exame técnico necessário serão antecipados à conta de verba orçamentária do Poder Judiciário, futuramente ressarcida pela entidade pública que afinal venha perder a demanda. Na fixação desses honorários, restringe-se o magistrado aos valores estipulados pelo Conselho da Justiça Federal em resolução, atualmente a de n. 440, importando o limite máximo da Tabela em pouco mais de meio salário-mínimo.

Como se nota, não fosse a incompatibilidade jurídica, operacionalmente também não é possível a designação de trabalho pericial como previsto no Código de Processo Civil, em sede de Juizados Especiais, dado que, não bastante a impossibilidade de chamamento do responsável pela prova para adiantar o valor da verba honorária (art. 19 do CPC), evidentemente que profissional qualificado para a realização de trabalho complexo, no geral com alta demanda de horas de trabalho, não se sujeitará aos valores fixados no âmbito dos Juizados Especiais Federais, previstos, justamente, para remunerar o exame técnico de menor complexidade, este sim cabível na sede especial.

Assim, como exemplo de incompetência dos Juizados Especiais Federais, pode-se citar as causas que envolvem litígios tratando de financiamentos habitacionais, tanto quanto à revisão contratual, que exigem cálculos e projeções financeiras de todo o período de amortizações, como também as referentes à responsabilização de terceiros por defeitos de construção, cuja solução depende de levantamentos técnicos de engenharia para verificação das reais condições do imóvel.

CRITÉRIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS – MAIS OBSTÁCULOS

Por fim, a corroborar a incompatibilidade procedimental das realizações periciais complexas com o rito procedimental dos Juizados Especiais, importante lembrar que as nuances previstas no Código de Processo Civil não se ajustam, em definitivo, aos critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.

Realmente. Além do problema relativo ao valor dos honorários periciais, já lembrado anteriormente, tem-se como incompatíveis com rito expedito os seguintes pontos: nomeação do perito pelo juiz e fixação de prazo para entrega do laudo, intimação das partes para indicação de assistentes técnicos e apresentação de quesitos (art. 421); incidentes de escusa, impedimento ou suspeição, com conseqüente substituição (art. 423); apresentação de quesitos suplementares com intimação da parte contrária (art. 425); intimação das partes quanto à data e local indicados pelo perito para realização da prova (art. 431-A); possibilidade de prorrogação do prazo para entrega do laudo (art. 432); intimação das partes da entrega do laudo em cartório pelo perito, para início da contagem do prazo de apresentação dos laudos divergentes dos assistentes técnicos (art. 433 e parágrafo único); envio dos autos para exame de órgão externo (art. 434).

Nota-se, então, pelas próprias exigências procedimentais inerentes aos trabalhos de exames técnicos previstos no Código de Processo Civil, que designações de perícias complexas no âmbito dos Juizados Especiais, em contrariedade aos termos das normas aplicáveis, inclusive da própria Constituição Federal, significam, em última análise, a ordinarização da sede especial, com conseqüente contaminação de seus salutares princípios de funcionamento, ocasionando, sem nenhuma dúvida, o soterramento da idéia inicial de superação da morosidade no andamento dos feitos ajuizados.

CONCLUSÕES

Como conclusões das explanações aqui trazidas, apresentam-se:

1) os Juizados Especiais configuram-se modalidade jurisdicional que vieram ao mundo predestinadas a superar a mazela da morosidade;

2) para atingimento de seus objetivos, necessária observância aos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade;

3) refoge à competência dos Juizados Especiais, como previsto pelo constituinte, as causa de maior complexidade;

4) não obstante subjetivo o conceito, pela interpretação sistemática do ordenamento aplicável, são consideradas complexas as causas que exijam realização de perícias técnicas nos padrões procedimentais previstos no Código de Processo Civil;

5) embora o legislador ordinário tenha especificado expressamente na Lei 10.259/01 que a competência dos Juizados Especiais Federais é definida pelo critério econômico (causas de até 60 salários-mínimos), dos termos dessa mesma Lei, como também da Lei 9.099/95, dessume-se que não se inserem em tal competência, mesmo que economicamente situadas em seus limites, as causas que exijam dilação probatória complexa, especialmente perícias técnicas não direcionadas pelos critérios da oralidade e simplicidade;

6) somente essa interpretação da Lei 10.259/01 encontra eco no mandamento constitucional do art. 98, onde claramente dito que a competência dos Juizados Especiais cinge-se às causas de menor complexidade, jamais restritas a critérios meramente econômicos, aferíveis singelamente pelo valor dado à causa;

7) admitir-se a realização de provas periciais complexas no âmbito dos Juizados Especiais Federais, em contrariedade às previsões das Leis e Constituição vigente, significa equiparar a sede especial à ordinária, ameaçando em definitivo a sobrevivência de uma das grandes e arrojadas criações humanas no campo jurisdicional, nascida com objetivo nobre.


[1] Figueira Jr., Joel Dias. Liminares nas Ações Possessórias, 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 91/92.
[2] Barbosa, Rui. Oração aos Moços, 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 40. Disponível em http://www.casaruibarbosa.gov.br/, consulta em 18/07/2006.
[3] Moreira, João Batista Gomes. Direito Administrativo. Da Rigidez Autoritária à Flexibilização Democrática. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p. 16.
[4] Barroso, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998. p. 123.