Políticas Públicas e Atuação Jurisdicional
* Juiz Federal Substituto da Seção Judiciária do Maranhão. Professor da UNDB. Pós-Graduado em Direito do Estado pelo CEPEJUR/Estácio de Sá
1. INTRODUÇÃO
Já se tornou corriqueira, no meio acadêmico, a discussão afeta aos limites e possibilidades do controle jurisdicional sobre os atos administrativos, muito embora tal assertiva não prejudique a constatação de que a análise da matéria encontra-se em franco processo evolutivo, na medida em que se vem reconhecendo uma ampliação da tutela do Judiciário sobre tais atos como mecanismo de efetiva implantação do Estado Democrático de Direito.
Todavia, no momento atual, tema que se tem tornado candente nestas mesmas searas de debate é aquele relativo à atuação do Poder Judiciário frente às políticas públicas a serem levadas a cabo pela Administração Pública.
Basicamente, a problemática em tela é decorrência da onda revolucionária do Estado Social, geradora da adoção do chamado Constitucionalismo Dirigente pelas Democracias Modernas, com o lógico alargamento das competências do Poder Executivo a partir da reconstrução do Estado sob a perspectiva de um modelo prestacional de conduta.
No caso do Brasil, a discussão encontra terreno propício notadamente a partir do advento da Constituição da República de 1988, que consagrou extenso rol de direitos individuais e sociais, além de prever diversos instrumentos processuais voltados à tutela dos direitos individuais e coletivos. Nessas condições, no afã de tornar realidade as garantias previstas na novel Constituição, cuja responsabilidade, em último plano, cabe ao Poder Judiciário, diante da omissão dos demais poderes, passa aquele Poder, de quando em vez, a necessitar imiscuir-se na esfera de implementação de políticas públicas a fim de aquilatar a efetiva observância das promessas constitucionais.
Por outro lado, como já tivemos oportunidade de ressaltar em trabalho anterior
[1], um paralelo traçado entre o caráter compromissório da Constituição Federal e o perfil de atuação política do Poder Público a partir principalmente da década passada revela quão paradoxal passou a ser a atuação do Estado nas relações sociais. É que, enquanto a Constituição Brasileira institui normas de conduta positiva ao Poder Público, a diretriz governamental tende a um desmantelamento desse perfil coletivista constitucionalmente estabelecido. As atividades antes consideradas essencialmente públicas são agora transplantadas para a iniciativa privada. A atuação estatal, em síntese, impõe uma subordinação do social ao econômico, priorizando algumas áreas de atuação em detrimento de outras diretamente ligadas a problemas atrelados a nossa realidade, o que evidentemente gera um déficit no cumprimento da prestação social a cargo do Poder Público.
Assim, se maior é hoje o leque de competências interventivas do Estado Administração – há quem fale na substituição do “governo de leis” pelo “governo de políticas públicas” -, maior é evidentemente a necessidade de exame dos limites de atuação do Poder Judiciário em relação a políticas públicas não realizadas ou realizadas de modo divorciado das cláusulas compromissórias inseridas na Carta Magna.
Daí a importância do desenvolvimento do presente tema, lembrando-se apenas que, com estas breves linhas, não se tem a pretensão de esgotar a matéria, mas somente lançar luzes sobre temática tão atual e fascinante, de forma a levar o leitor a uma reflexão madura sobre a importância do Poder Judiciário na proteção e concretização dos interesses maiores da sociedade.
2. A CONSTITUIÇÃO ENQUANTO LEI FUNDAMENTAL
Nos tempos atuais, o Direito Constitucional vem ampliando sua importância como elemento de coesão do ordenamento, na medida em que, num Estado de caráter intervencionista e de sociedade pluralista, apresenta-se imprescindível a estruturação de um plexo normativo que assegure a organização desse próprio Estado e dos interesses maiores da coletividade.
Contudo, toda essa evolução requer uma breve análise de cada momento histórico vivido pelas Constituições, cada função exercida por estas em face da conjuntura sócio-política em que inseridas, para que possamos compreender qual o papel da norma constitucional na sociedade moderna, notadamente seu valor enquanto meio jurídico de garantia dos interesses coletivos. Isto porque, parafraseando KONRAD HESSE, o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas - ordenação e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco.
[2]Situando-nos a partir dos movimentos liberais do século XVIII, podemos dizer que as Constituições, nessa fase, adquirem um matiz de instrumento voltado essencialmente para a atividade do Estado, como técnica de organização do poder, engendradas por outro lado, também, como garantia da liberdade de atuação individual.
Por sua vez, os direitos individuais garantidos nestas primeiras Constituições Liberais não passaram de meras declarações de princípios anexos ao texto constitucional propriamente dito e de acentuada generalização
[3], donde surgir também a impossibilidade da norma de status constitucional, neste período, ser invocada como fundamento de uma pretensão do indivíduo, razão pela qual era reduzida a importância que se lhe atribuía no contexto social.
O problema maior era que, no momento em que se vislumbrava na norma constitucional elemento apenas de organização do poder, perdendo a mesma em relevância no meio social, uma vez que não vivenciada no cotidiano das relações humanas, passava-se a atribuir também ínfima juridicidade a seus preceitos. Neste passo, ressalta PAULO BONAVIDES que
"A corrente de publicistas presos a esse entendimento reduziu conseqüentemente sua visão interpretativa das Declarações à identificação nelas de um mero conjunto de princípios gerais e abstratos, desprovidos de natureza jurídica, sem eficácia vinculante, de aplicabilidade duvidosa ou impossível; princípios meramente éticos, aptos quando muito a inspirar o legislador segundo diretrizes ideológicas, mas de modo algum idôneos a obrigar os cidadãos ou órgãos estatais."
[4]Sob a ótica acima vista, observa-se que, no período de surgimento do Estado Liberal, pouca ou nenhuma força normativa se reconhecia aos textos constitucionais, situação essa que só vem a modificar-se no momento de consolidação dos ideais liberais, em que, transplantando-se para o texto da Constituição na forma de artigos as declarações de direitos, atribui-se maior normatividade ao conteúdo das Constituições como um todo.
[5]Contudo, a derrocada do Estado Liberal impôs nova crise ao conceito jurídico de Constituição. Isto porque se utiliza o constituinte do Estado Social de cláusulas que pretendem consagrar os compromissos e as diretrizes do Poder Público com a implementação de interesses sociais, enunciando-se, através de fórmulas programáticas, direitos sociais relativos ao trabalho, à educação, entre outros, cujo grau de abstração dificultava sobremaneira sua redução a direitos públicos subjetivos.
Assim, é exatamente a característica de programaticidade das Constituições que mais uma vez traz à baila as dissensões acerca da juridicidade das normas constitucionais, levando a uma nova crise no sentimento de obrigatoriedade da norma constitucional.
Como lembra BONAVIDES, os constitucionalistas do positivismo prevalecente até o início do século XX intentavam criar uma verdadeira separação entre o jurídico e o programático, atribuindo a este último expressões de juízo negativo como "admoestações morais", "boas intenções" etc., tudo como forma de negar valor normativo aos preceitos enunciadores de objetivos do Estado.
[6] Utilizava-se dessa tese, em verdade, para afastar do campo da obrigatoriedade qualquer norma considerada incômoda, uma vez que, para não aplicá-la, era necessário somente tachá-la de programática.
[7]Todavia, a abertura feita aos direitos sociais a partir do estabelecimento de normas programáticas não pode ter o condão de retirar do conteúdo do Pacto Fundamental seu valor vinculante. Isto porque a Constituição espelha hodiernamente o momento de reestruturação das relações políticas e sociais de um dado povo, tarefa essa que pressupõe uma atribuição à norma constitucional de elevado valor normativo, sob pena de impossibilitar-se a organização do Estado e a harmonização dos interesses dos grupos sociais.
[8]Desse modo, a Constituição representa, hoje, norma dirigida ao Estado e à sociedade, posto que regula o exercício do poder, mas também impõe um vetor de atuação positiva do Estado na ordem social. Opera, assim, força normativa em caráter absoluto e, independentemente do grau de sua aplicabilidade no plano material, sempre vincula o Estado, permitindo, ainda, aos cidadãos, via de regra, um acesso direto à norma constitucional como meio de tutela contra o arbítrio ou a omissão dos poderes públicos.
Lúcidas, neste passo, as palavras de BONAVIDES: "Reconstruir o conceito jurídico de Constituição, inculcar a compreensão da Constituição como lei ou como conjunto de leis, de sorte que tudo no texto constitucional tenha valor normativo, é a difícil tarefa que se depara à boa doutrina constitucional de nosso tempo."
[9]A seu turno, vejamos as ricas ponderações de VITAL MOREIRA e CANOTILHO, para quem, atualmente
"(...) encontra-se superada a idéia da Constituição como um simples concentrado de princípios políticos, cuja eficácia era a de simples directivas que o legislador ia concretizando de forma mais ou menos discricionária. Não se questiona, pois, a juridicidade, vinculatividade e actualidade das normas constitucionais. Isso não impede naturalmente que se deva clarificar a tipologia das normas constitucionais e pontualizar sua função e eficácia no contexto global da Constituição, pois é claro que nem todas as normas constitucionais têm a mesma natureza, estrutura e função, sendo variável a intensidade de sua força conformadora imediata. Todas elas, porém, possuem uma eficácia normativa, seja como direito actual directamente regulador de relações jurídicas (exemplo: normas consagradoras de direitos fundamentais), seja como elementos essenciais de interpretação e de integração de outras normas (exemplo: normas consagradoras de princípios políticos). A Constituição é, pois, um complexo normativo ao qual deve ser assinalada a função verdadeira de lei superior do Estado, que todos os órgãos vincula."
[10]Por outro lado, no que tange à supremacia constitucional, como lembra CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, esta não possui força de isoladamente garantir o respeito às Constituições enquanto norma fundamental. Deveras, mister se faz haja no seio social uma "conscientização constitucional", de modo a estabelecer-se um sentimento de respeito à norma suprema como alicerce do Estado de Direito.
[11]Fala HESSE, assim, numa "vontade de Constituição", como elemento garantidor da supremacia da norma constitucional. Para ele, "a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição. "
[12] Essa vontade de Constituição originar-se-ia, em suma, da compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, bem como de que sua eficácia depende do concurso da vontade humana, ou seja, do interesse social prioritário no cumprimento da norma constitucional.
[13]Conclui-se, portanto, que todas as normas constitucionais, inclusive as programáticas – veiculadoras das políticas públicas a serem implementadas -, possuem um carga jurídica vinculante e estão no patamar máximo de estruturação do plexo normativo, razão pela qual jungem o Estado a seu efetivo cumprimento, devendo o ordenamento jurídico possuir mecanismos de exigibilidade dessa obrigação, com a previsão de órgãos dotados de prerrogativas de tutela do efetivo cumprimento do texto constitucional.
3. O PERFIL ATUAL DO PODER JUDICIÁRIO ENQUANTO GARANTIDOR DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL E DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Analisada a questão da supremacia constitucional e da necessidade de efetiva implementação das promessas inseridas na Lei Maior, impende tecer-se breves comentários acerca do papel do Poder Judiciário moderno como partícipe do processo de realização da Constituição.
A partir do exame da estrutura das Constituições modernas, observa-se que o sistema de controle judicial de constitucionalidade engendrado busca essencialmente atribuir ao Poder Judiciário a função de órgão assegurador do cumprimento da vontade constitucional
[14], tanto na perspectiva da estrita observância dos direitos fundamentais, quanto da implementação dos programas sociais normativamente previstos.
E é exatamente em virtude da função atribuída ao Poder Judiciário, como desaguadouro final das angústias sociais e última instância de guarda da Constituição, que se tem evoluído, em doutrina, a fim de admitir-se um papel mais ativo ao julgador no controle das ações do Poder Público.
Nesse contexto, fala-se, modernamente, na jurisdição examinada sob uma perspectiva instrumentalista, de modo que o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional não pode mais ser entendido como mera garantia da “ação”, mas como tutela do próprio direito vindicado, como meio de condução a uma ordem jurídica justa e efetiva. É dizer, o papel do Judiciário se expande a fim de permitir-se a efetiva vivência das garantias constitucionais no seio social, não se concebendo mais o mero asseguramento do direito sob a ótica eminentemente formal.
Tal aspecto, outrossim, importa em verdadeira universalização da jurisdição, sendo que a minimização dos resíduos conflituosos “não jurisdicionalizáveis” possibilita hoje, por exemplo, no que tange às atividades concretas do Poder Público, uma maior extensão do controle dos atos administrativos, com exame de aspectos antes considerados “mérito” do ato e, portanto, insindicáveis.
A isto se soma, a partir de inspiração da doutrina alemã, a constante aplicação do princípio da proporcionalidade no exame da legitimidade dos atos do Poder Público, de forma a verificar-se a compatibilidade entre os meios empregados pelo administrador e os fins visados, o que, no direito norte-americano, encontrou aplicação através da clausula do substantive due process of law.
Todas essas observações levam a uma constatação: o papel do julgador moderno deve ser o de preservar os direitos do cidadão de modo intransigente, sempre que a tutela desse direito possa ser realizada dentro do seu campo de atribuições. Não se concebe, hodiernamente, um magistrado estático, qual Pilatos. É dizer, um magistrado alheio às injustiças sociais e com uma visão meramente formalista da prestação jurisdicional.
A ótica acima vista do perfil atual do magistrado, de outro giro, leva a uma outra conclusão: afigura-se incabível exigir-se neutralidade dos juízes na guarda e implementação de valores e princípios tão abstratos e carentes de significação como são a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (art. 1°, III, e 3°, I e III, da CF).
[15]Com propriedade, assevera COUTURE:
“Podremos decir que el juez es solamente ‘la voz que pronuncia las palabras de la ley’? Podremos decir que es ‘un ser inanimado’? Me parece que no. En todo caso, esa concepción representa un exceso de lógica formal, a expensas de la lógica viva. El juez no puede ser un signo matemático, porque es um hombre; el juez no puede ser la boca que pronuncia las palabreas de la ley, porque la ley no tiene la posibilidad material de pronunciar todas las palabras del derecho; la ley procede sobre la base de ciertas simplificaciones esquemáticas y la vida presenta diariamente problemas que no han podido entrar em la imaginación del legislador... (...) El día que los jueces tienen miedo, ningún ciudadano puede dormir tranquilo. El sentido profundo y entrañable del derecho no puede ser desatendido ni desobedecido y las sentencias valdrán lo que valgan los hombres que las dicten.”
[16]Partindo dessa premissa, conclui o juiz argentino RODOLFO CAPÓN FILAS que “todo esto importa porque la intención del sistema judicial es hallar um equilibrio entre libertad y autoridad, entre calidad profesional y poder. No se puede olvidar que la justicia se relaciona com la polìtica, pareja de compleja convivencia el la dignidad.”
[17]Portanto, a era do pós-positivismo, porque súdita de um Constitucionalismo reaproximador do Direito e da Justiça e refratária de um legalismo acrítico, traz à tona valores como a razoabilidade, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a normatividade dos princípios, enfim, a efetivação dos direitos fundamentais, sempre. E é dentro dessa perspectiva que se deve conduzir o “novo” julgador.
3. O CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO FORMA DE REALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
Via de regra, objeta-se a possibilidade de interferência do Judiciário nas políticas públicas estatais em virtude da potencial violação do dogma da separação de poderes.
Entrementes, deve-se acentuar que o princípio da separação dos poderes, tal como concebido tradicionalmente, sustentava-se como sistema de balanceamento entre as funções estatais, de modo a garantir a liberdade individual, nos termos concebido pelo ideal liberal. Partia-se de premissas distintas daquelas que acalentaram a formação do Welfare State, que concebe o Estado como prestador de serviços e exige, em conseqüência, um controle do adimplemento da obrigação estatal.
É óbvio que, na moldura tradicional do esquema de separação de poderes, não há sustentação para a tese da judicialização da política, isto é, a interferência do Judiciário nas questões a cargo do Executivo, até porque ao Estado não cabia o papel de veicular amplas mutações sociais, de modo a tornar despiciendo qualquer controle desse papel, se o mesmo era, em verdade, inexistente.
Todavia, a partir da concepção contemporânea de um Estado prestacional, em que se atribui ao Executivo uma séria de obrigações de conteúdo positivo, nas áreas educacional, assistencial etc., exige-se um remodelamento do princípio da separação de poderes
[18], de modo a permitir a existência de um instrumental efetivo de controle da inação do Poder Público. E é aí que entra o Poder Judiciário.
Assim, tal princípio requer hodierna interpretação condizente com a hipertrofia do Executivo, ou seja, a ampliação da zona de atuação deste Poder, decorrente, aliás, tanto da gama de atividades a ele incumbidas pelas Constituições modernas, como acima visto, quanto da inoperância do Legislativo no exercício de sua competência típica, acarretadora da contínua atividade legiferante exercida pelo Executivo, a qual, segundo a sistemática do Constituinte, deveria ocorrer apenas de modo excepcional.
Por seu turno, voltando à questão do ativismo judicial – o qual está umbilicalmente ligado ao controle jurisdicional de políticas públicas -, verifica-se que, no direito norte-americano, os adeptos do Originalismo combatem com veemência esse modelo de condução da atividade judicante. Argumenta-se que as construções jurídicas desenvolvidas pelo Poder Judiciário encontram óbice intransponível na estrutura inerente aos países democráticos, em que deve prevalecer a vontade da maioria, no caso representada pelas ações do Legislativo e Executivo. Desse modo, o controle jurisdicional teria feição contramajoritária (countermajoritarian difficulty), legitimando-se apenas nos lindes expressos do texto constitucional.
[19]Recorde-se, todavia, que a Constituição moderna, como já dito alhures, é essencialmente compromissória, atribuindo prioritariamente ao Executivo e ao Legislativo, através de ações concretas e normativas, respectivamente, o dever de realizar as políticas voltadas ao bem-estar social. E, evidentemente, ao Poder Judiciário deve ser reservado algum papel, no caso exatamente o de garantir ao cidadão, em caráter secundário, que o dever do Estado a ser exercido através dos agentes com representatividade política seja efetivamente cumprido.
Necessário, outrossim, ter-se a percepção clara de que o exercente de função tem não apenas um poder, mas, acima de tudo, um dever de alcançar a finalidade das leis e prioritariamente da Constituição. Assim, nas competências públicas, a quantidade de poder outorgado é pura e simplesmente a contraface do dever a ser cumprido, isto é, uma vicissitude deste dever. Logo, coincide ontologicamente com o suficiente e indispensável para dar cumprimento ao dever de bem suprir o interesse em vista do qual foi conferida a competência. A omissão ou o excesso configuram um extravasamento dos limites da atividade, ensejando pronta fulminação pelo órgão legitimado constitucionalmente a exercer este mister de controle.
[20]Nesse contexto, o Poder Judiciário constitui o termômetro na análise do equilíbrio e tensões entre os Poderes no cumprimento de seus misteres e obviamente tal missão não pode ser exercida sem certa carga axiológica. Daí resultar a necessidade do ativismo judicial, vez que cabe ao Judiciário controlar a condução das atividades do Executivo e do Legislativo tanto sob o prisma positivo quanto negativo, isto é, coibindo ora os abusos quando do extrapolamento de suas competências, ora as omissões na efetivação das políticas públicas expressas na Carta Magna Pátria, de modo a assegurar efetivamente as promessas constitucionais relativas à saúde, emprego, bem-estar social etc.
Conclui-se, pois, que o princípio da separação dos poderes e o princípio majoritário não são óbices ao reconhecimento da função positiva do Judiciário no controle das políticas públicas. A uma, porque a separação de poderes tem apenas conotação de garantia do indivíduo, no sentido de permitir-se a desconcentração de poder e evitar-se o abuso no exercício do mesmo. A duas, porque o princípio majoritário é tão-somente instrumento de participação política do cidadão na vida do país, o que não impede a legitimidade do Judiciário para atuar em questões de tal natureza, porque tal legitimidade provém da própria Constituição.
[21]Quanto as limites impostos pela reserva do possível, que para alguns seria também obstáculo à função do Judiciário no controle das políticas públicas, há que se ressaltar o fato de, como agente político, também se exigir do julgador cautela e razoabilidade na condução de seu mister.
Não se pode negar, também, o risco que existe do uso do arbítrio em situações isoladas, porém tal risco não é privilégio decorrente da atividade dos juízes, vez que ele também existe na atividade dos outros Poderes, como comumente tem a história demonstrado. Porém, em favor do Judiciário, pesa primacialmente a necessidade de adoção de um juízo técnico relativo à conformação da atividade judicante aos princípios e normas constitucionais e o sistema de controle recursal, o que minora o grau de subjetivismo dos julgamentos e o risco de decisões divorciadas da realidade econômica do país. Por outro lado, entre o engessamento da atividade jurisdicional sob o pálio do risco da arbitrariedade e a libertação do espaço político de atuação do julgador como forma de permitir a realização dos mandamentos constitucionais, é preferível ficar-se com a segunda opção no sopeso dos valores em confronto.
Tal entendimento, outrossim, não superlativa as atribuições do Judiciário, tornando-o um poder acima de outros poderes, mas sim assegura a supremacia da Constituição, a qual estão adstritas todas as vertentes funcionais do Estado.
Já em juízo conclusivo do trabalho, podemos dizer que a definição moderna da Constituição como instrumento promotor de uma justiça substancial exige do Judiciário o exercício do controle do cumprimento dos dispositivos ali inseridos. Nessa senda, a visão do Judiciário como dotado da prerrogativa de controle das políticas públicas, antes de constituir qualquer sinal de invasão na reserva de atribuições de outros Poderes, significa estrita observância do seu papel de guardião da Constituição e mecanismo de garantia da força normativa deste diploma fundamental.
5. CONCLUSÃO
A norma constitucional não mais significa espaço de aspirações políticas como em tempos imemoriais, quando era utilizada como instrumento de retórica ou de justificação das diretrizes de diversos governos ilegítimos. Ao revés, a norma constitucional deve ser atualmente alçada à categoria de regra de conformação da atividade do Poder Público, como forma de garantia da implementação dos interesses sociais, dotada, assim, de plena imperatividade.
Em suma, como magistralmente averba CLÈVE, "a compreensão da Constituição como norma, aliás norma dotada de superior hierarquia; a aceitação de que tudo que nela reside constitui norma jurídica, não havendo lugar para lembretes, avisos, conselhos ou regras morais; por fim, a compreensão de que o cidadão tem acesso à Constituição, razão pela qual o Legislativo não é o seu único intérprete, são indispensáveis para a satisfação da supremacia constitucional."
[22]E na tarefa de efetivação do texto constitucional, o Poder Judiciário exerce papel ímpar, constituindo a última via de aspiração do povo, podendo e devendo intervir nas políticas públicas, com a dose adequada de razoabilidade, a fim de permitir a materialização de todas as promessas eleitas pelo legislador constituinte como fatores necessários a uma efetiva estabilidade social.
Conclui-se, destarte, que todas as potencialidades da Carta Magna, com seu evidente avanço em busca da solução das desigualdades sociais, impõe ao julgador o esgotamento de todo o espectro interpretativo do texto constitucional, de modo a coibir o desvirtuamento do Poder Público diante das diretrizes de sua atividade, tornando viva a função jurisdicional no implemento das garantias do cidadão.
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*Juiz Federal Substituto em Caxias/MA. Professor do UNICEUMA (licenciado). Especialista em Direito do Estado pelo CEPEJUR/Estácio de Sá.
[1] RAMOS NETO, Newton Pereira. Apontamentos sobre a problemática da inconstitucionalidade por omissão no Brasil. In: Revista do Ministério Público do Estado do Maranhão - Juris Itinera, São Luís, n. 09, p. 189-210. 2002.
[2] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris ed., 1991, p. 13. Tradução de: Die normative Kraft der Verfassung.
[3] Cf. ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas S.A ed., 1991, p. 56. Apud: CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 18.
[4]BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 202.
[5] Cf. Id. Ibid., p. 205.
[6]BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 218.
[7] Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 136.
[8]Como já prelecionava RUI BARBOSA no início do século passado, "não há, numa Constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos.". Comentários à Constituição Federal Brasileira. v. II. São Paulo: 1933, p. 439. Apud: BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 211.
[9]Id. Ibid., p. 210.
[10]MOREIRA, Vital. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra ed., 1991, p. 43. Apud: CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no Direito Brasileiro. p. 22.
[11]CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. cit., p. 26.
[12] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. p. 19-20.
[13] Id. Ibid.
[14] No caso do Brasil, como é cediço, o sistema de controle de constitucionalidade pode ser considerado um dos mais evoluídos do mundo, vez que se adota entre nós um mecanismo onde se fundem os modelos concentrado-principal, de origem européia, e difuso-incidental, de origem norte-americana, evidentemente ampliando as possibilidades de efetivação da Constituição.
[15] CAMBI. Eduardo. Critério da transcedência para a admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, § 3°, da CF): entre a autocontenção e o ativismo do STF no contexto da legitimação democrática da jurisdição constitucional. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al (coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 155.
[16]Introducción al estudio del proceso civil. Depalma, Bs. As., 1949, p 69. Apud: FILAS, Rodolfo Capón. Desde donde, em donde y para qué juzga el juez. In: Cidadania e Justiça – Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. São Paulo. Ano 05, n. 12, p. 48-57, 2° semestre/2002.
[17]Justicia y política, en Criterio, julio 2001, p. 337. Apud: idem.
[18] Karl Loewenstein, em obra publicada no ano de 1957 (Political Power and the Governmental Process), propôs a releitura do critério de separação de poderes, a fim de que a nova tripartição fosse baseada nas atividades de policy determination, policy executation e policy control. Vê-se, pois, que, a partir dessa classificação, o ponto de partida para a distribuição de funções estatais seria não mais a lei e o papel do Estado diante da mesma (elaboração, cumprimento e fiscalização), mas sim as políticas públicas, cabendo ao Judiciário, evidentemente, a função de controle destas últimas. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade das Políticas Públicas. In: Interesse Público. n. 16, 2002, p. 56.
[19] Cf. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 114-115.
[20]Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Problemas do Direito Administrativo. In: JurisSíntese - legislação e jurisprudência. Porto Alegre: Síntese ed., 2001, nº 29, mai/jun, 2001. CD ROM.
[21] Cf. CAMBI, Eduardo. Op. Cit. p. 153-165.
[22]CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. cit., p. 27.