Isenção da Cofins para as Sociedades Civis Prestadoras de Serviços Profissionais: Divergências sobre sua Revogação
*Juiz Federal Substituto em Salvador. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Processual Penal, nível de pós-graduação lato sensu, da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte. Ex-Promotor de Justiça do Rio Grande do Norte. Ex-Defensor Público da União.
A divergência sobre a revogação ou não da isenção da contribuição para o financiamento da Seguridade Social (Cofins) em favor das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais regulamentados remanesce no cenário jurídico brasileiro. Passados mais de dez anos do advento da Lei Federal n.º 9.430/1996 – que teria, através de seu artigo 56, revogado o art. 6º, II, da lei Complementar n.º 70/1991 –, assiste-se à renovação do debate, agora, no Supremo Tribunal Federal. Parece longe, ainda, de ser pacificada a “incerteza”.
O problema jurídico surgiu em razão da suposta revogação da isenção, instituída por lei complementar, ter se dado por lei ordinária. As argumentações se desenvolveram levando em consideração o fato de que a Lei Complementar n.º 70/1991 teria disciplinado matéria a ela não reservada, isto é, que poderia ser disposta por lei ordinária. Uma espécie de invasão, por aquela, da esfera de competência do legislador ordinário.
Formaram-se daí duas correntes jurisprudenciais de vertentes distintas. Uma que entendia haver hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, haja vista a própria ordem do art. 59, da Constituição do Brasil, aliada ao fato de que a primeira depende de quorum qualificado de aprovação, enquanto a última é aprovada por maioria simples. A outra posição defende inexistir hierarquia entre leis, já que ambas encontram seu fundamento de validade na Constituição. Lei ordinária, assim, não haure sua validade em lei complementar, porém na Lei Maior.
Importa, para a correta colocação da quaestio, compreender bem os fundamentos da hierarquia dos diplomas normativos pátrios, já que não se pode descurar de que a vinculação da Carta da República “e de suas normas é uma realidade do constitucionalismo contemporâneo” (CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 31). O controle de constitucionalidade dos atos normativos é relevante para assegurar a supremacia da Constituição, mediante a “verificação da compatibilidade vertical das normas”, garantindo, assim, sua rigidez, com “um sistema eficiente de defesa da Constituição, para que ela prevalecesse sempre” (VELOSO, 2003, pp. 17-18).
O pensamento kelseniano permeia o que se entende por hierarquia das normas. Entende-se, por esse prisma, que a norma é válida quando encontra seu fundamento de validade na Constituição. Todavia, “sendo a Constituição a norma de origem do Direito positivo”, indaga-se “em qual norma descansa o fundamento de validade da Constituição positiva” (IVO, 1997, p. 36). E é Hans Kelsen (1997, p. 217) quem responde, dizendo que “o fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem”.
Não obstante a contribuição kelseniana, entende-se que a atividade interpretativa/aplicadora do direito não deve simplificar-se em aferir a compatibilidade vertical das normas sem levar em consideração outros aspectos, inclusive de ordem interdisciplinar. Trata-se da necessidade de tomada de consciência da situação hermenêutica do jurista em sua tradição. Ele deve partir de uma posição prévia, de uma visão prévia e de uma concepção prévia a respeito dos entes, esforçando-se para compreendê-los em seu “ser”. É que “a pirâmide de Kelsen não basta para” exprimir o direito (SIFUENTES, 2005, p. 301). “Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa” (HESSE, 1991, p. 20).
Com Elton Luiz Leite de Souza, propugna-se por um direito rizomático – “rizoma é uma raiz que troca a profundidade do solo pela sua superfície sem fronteiras” – que se caracteriza “pela multiplicidade de perspectivas que ele engendra ao se expandir enraizando-se, também, na sociedade”, diversamente do que pensa o direito positivista, onde “as raízes da árvore jurídica devem estar presas a um único solo: o Estado – e tão somente a este” (2007, pp. 15-16).
Com essas premissas iniciais, cabe examinar os argumentos de cada uma das correntes a respeito de se ter operado revogação ou não da isenção da contribuição para o financiamento da Seguridade Social (Cofins) em favor das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais regulamentados. A primeira entende haver hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. A segunda entende que não há tal hierarquia.
Dessarte, a posição que sustenta não ter se operado revogação tem, inclusive, seu entendimento sumulado no verbete n.º 276, do Superior Tribunal de Justiça, que giza que “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado”. A par desse aspecto, outro argumento em que se escuda essa corrente é na existência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, razão pela qual, mesmo havendo disciplina de matéria do legislador ordinário pelo complementar, não é possível modificação da lei complementar por veículo normativo de patamar inferior.
Sob esse ponto de vista, como a suposta revogação da isenção estatuída no art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991, pelo art. 56, da Lei Federal n.º 9.430/1996, equivaleria a uma criação de novo tributo em desfavor das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, aquela não seria admissível, por ser vedada a revogação de lei complementar por lei ordinária, mercê da hierarquia existente entre elas.
Por sua vez, a outra linha entende pela validade de revogação de lei complementar por lei ordinária, quando aquela haja, primeiro, invadido a esfera material desta. Desse modo, volvendo-se para o caso da Cofins, em virtude de inexistir reserva de lei complementar em matéria de contribuição social, não haveria impedimento para exigi-la das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, ex vi do art. 56, da Lei Federal n.º 9.430/1996.
Essa doutrina encontra respaldo no normativismo kelseniano e no positivismo, sendo tese, inclusive, sufragada pelo Supremo Tribunal Federal, interessando sublinhar, contudo, que a Suprema Corte, na matéria específica da Cofins, tem se manifestado recentemente, através de seus órgãos fracionários, pendente a apreciação do mérito da lide pelo órgão plenário.
Impende, todavia, mencionar os fundamentos de voto do Min. Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma – RE: 419.629-8/DF – DJ 30/6/2006), que determinou ao Superior Tribunal de Justiça que afastasse a premissa de que lei complementar seria superior à lei ordinária e apreciasse o mérito de recurso sobre a isenção da Cofins, pontificando que “o conflito entre lei complementar e lei ordinária não há de solver-se pelo princípio da hierarquia”, porém se impõe perquirir se a matéria está “ou não reservada ao processo de legislação complementar”, concluindo que não há “violação ao princípio da hierarquia das leis”, isto é, “da reserva constitucional de lei complementar”, cuja observância exige que seja respeitado “o âmbito material reservado às espécies normativas previstas na Constituição Federal”.
Assentados, embora sucintamente, os motivos de cada uma das posições jurisprudenciais, cabe, com Gabriel Ivo (2006, p. 97), concordar que é possível ocorrer a revogação “entre instrumentos introdutores de normas diversos”, já que é a Constituição que “tem a função de fundamentar a validade” de todas as leis indistintamente, estando todas as normas que compõem a unidade do sistema jurídico “ligadas entre si, em relações de coordenação e subordinação”, avivando-se que “são todas elas reconduzíveis ao núcleo originário, que fixa o critério de validade”.
Outrossim, se é certo que “lei complementar pode regular qualquer matéria”, mesmo aquelas a ela não reservada, “o contrário não ocorre”, ou seja, não é colocado óbice a que, no futuro, “aquela matéria propriamente de lei ordinária, mas contida no enunciado-enunciado de uma lei complementar, não possa ser tratada” através de uma lei ordinária. “A lei ordinária não fica paralisada frente à lei complementar nesses casos” (IVO, p. 102).
A disciplina das isenções das contribuições sociais não é reservada à lei complementar. Se essa dispuser, como o fez na hipótese da isenção das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais regulamentados em relação à Cofins, não há impedimento, via de regra, para haver revogação daquela por meio de lei ordinária – que assim disponha expressamente, que tenha matéria incompatível com a anterior ou que regule inteiramente o direito antes disciplinado pela lei complementar –, como aparentemente teria ocorrido por intermédio da edição da Lei Federal n.º 9.430/1996.
Advirta-se, porém, que “isso não significa que as leis complementares não possam ser hierarquicamente superiores às leis ordinárias”, já que, quando se cuidar de lei complementar que regulamente “o modo de elaboração, redação, modificação e consolidação das leis ordinárias” (parágrafo único, do art. 59, da Constituição do Brasil), ocorrerá “hierarquia formal-procedimental” (ÁVILA, 2004, p. 132).
No caso da isenção em tela, nuances outras carecem de ser levadas em conta, rechaçando-se soluções mecânicas, simplistas que, ao cabo, mais dificultam a efetiva resolução dos litígios. O direito não se fecha no normativismo kelseniano. É mister que o jurista avance, aproximando-se de outras disciplinas, como a filosofia, a psicologia jurídica e a sociologia jurídica, num prisma ontológico-fundamental. “A compreensão deve ser entendida como um ato da existência”, porquanto o intérprete é ser-no-mundo, num contexto em seu tempo, devendo ter consciência de que é membro “de uma cadeia ininterrupta graças à qual” é interpelado pelo passado (GADAMER, 2006, pp. 57-58). Esse é o matiz filosófico que não põe fim ao pensamento, atentando para as singularidades do caso concreto, certificando-se, com Lenio Luiz Streck (2004, p. 875) que “a viragem lingüístico-hermenêutica demonstrou que ambas as metafísicas (clássica e moderna) foram derrotadas”.
Na senda de João Batista Gomes Moreira (2005, p. 63), no direito, “a mudança consiste na superação do modelo cartesiano, centrado no pensamento reducionista, causal e mecânico, para fazer predominar o sentido da totalidade”. E, com Martin Heidegger (2005, p. 100), pode-se completar que a relação sujeito-objeto não é suficiente, carecendo atribuir maior ênfase ao sentido de que “conhecer é um modo ontológico do ser-no-mundo”, que está inserto no contexto interpretativo de sua tradição e temporalidade, sempre dotado de pré-compreensão.
É de ver que o princípio da segurança jurídica deve permear a controvérsia ora cuidada. Não simplesmente com base na estabilidade das relações jurídicas, em abstrato, mediante decisões uniformes. Tal forma de pensar não é bastante diante da complexidade da vida (pós-)moderna. Mas, o que importa notadamente, é uma fundamentação segura, que espose a compreensão atenta com a tradição e que saia da cotidianidade, para retirar o cobertor impeditivo da percepção da multiplicidade de problemas que podem advir de julgados que não encontrem respaldo social, no seu contexto humano. Esse proceder, como dito em outro lugar, “confere maior credibilidade à justiça e efetividade do direito material”, merecendo refutação “a aplicação de dogmas repetidos como verdades absolutas” (ALENCAR, 2006, p. 62). A propósito, como aduz Andréas Joachim Krell, sob lente diversa, “o controle de constitucionalidade”, diferentemente de uma postura fechada, automatizada, “sempre vai envolver também uma atitude política do legislador” (2002, p. 95). “A constituição é um dinamismo”, sendo insuficiente a “ideologia estática da interpretação jurídica” (GRAU, 2003, p. 147).
Seguindo o fio condutor da questão a respeito da ocorrência ou não de revogação da contribuição para o financiamento da Seguridade Social alusivamente às sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, outros aspectos interferem para a compreensão adequada da discrepância doutrinária e jurisprudencial. Vale dizer, também o direito material veiculado pela lei complementar supostamente revogada e pela lei ordinária revogadora são relevantes para o desate da disputa.
Deveras, em se tratando de matéria tributária, onde esteja em jogo a validade de uma exação, é razoável exigir que os veículos introdutores de normas supressoras de outras normas deixem um campo de abertura menor. A interpretação/aplicação do direito é inexorável. A uniformidade é um ideal de dificílimo, senão impossível alcance. Contudo, o texto também tem sua função, no plano da expressão. A preocupação de expedição de leis precisas em matéria de revogação, máxime quando seja caso de instituição de tributo mediante revogação, deve ser uma constante. Preferencialmente expressa ou, não sendo possível, que a lei não tenha uma textura que propicie disparate igual a da isenção ora tratada: passados mais de dez anos e depois de sumulada a questão pelo Superior Tribunal de Justiça, busca-se uma nova “verdade” através do entendimento que equivale à instituição de tributo cuja interpretação tem espeque no pensamento positivista.
Para tal desiderato, paradoxalmente, as correntes apontadas esquecem alguns dogmas e ficam com outros, num modo de pensar metafísico, in abstracto, que não enxerga a singularidade da questão. Malgrado adeptos da hermenêutica clássica ou da histórico-evolutiva, não se vê acatamento às lições de Carlos Maximiliano (2006, p. 271), consistentes em que “quando se trata de competência para decretar ônus fiscais, decide-se, na dúvida, pelo poder de tributar” e “quando se interpreta lei de impostos, observa-se o inverso – opina-se, de preferência, a favor do contribuinte e contra o fisco”.
Sob outro enfoque, acresça-se que se é certo que o enunciado da Súmula n.º 276, do Superior Tribuna de Justiça foi editado mormente em face das divergências a respeito do cabimento ou não da isenção diante do regime jurídico adotado pelas sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada (controvérsias decorrentes do apego literal ao revogado art. 1º, do Decreto-lei n.º 2.397/1987, que apontava não incidência de imposto de renda para aquelas pessoas de forma restrita, isto é, a depender do regime escolhido), não menos exato é que esse verbete foi aprovado em 14/5/2003, quando já vigente a Lei Federal n.º 9.430/1996.
Impende perlustrar que, na oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a Lei Federal n.º 9.430/1996 apenas revogou os artigos 1º e 2º, do Decreto-lei n.º 2.397/1987, permanecendo em vigor a norma de isenção do art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991. Não se fez menção, no verbete n.º 276, à suposta hierarquia existente entre lei complementar e lei ordinária, valendo anotar, a propósito, a existência de precedentes que supedanearam a aprovação da aludida Sumula que não fizeram alusão a esse fundamento, verbi gratia, o AgRg n.º 226.386/PR (Min. Eliana Calmon), conquanto não se desconheça outros que se supedanearam na pirâmide kelseniana.
Com essas anotações, tem lugar o pontificado por Tárec Moysés Moussallem (2005), em estudo específico sobre o tema, que, embora entenda inexistente a hierarquia entre lei complementar e lei ordinária – admitindo a possibilidade de revogação válida daquela por esta –, chama a atenção, notadamente, para o fato de que os artigos 56 e 88, XIV, da Lei Federal n.º 9.430/1996, não tiveram o condão de revogar a isenção específica de Cofins, do art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991 (este é norma específica em relação aqueles). Com efeito, há várias formas de se contribuir para a Seguridade Social, sendo a Cofins apenas uma das contribuições dentre as devidas pelo contribuinte àquela.
Concluindo pela não-revogação do art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991, Tárec Moysés Moussallem (2005, p. 276) averba duas justificativas para o seu posicionamento: (1) “o art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/91 não é ‘norma’ dependente, nem ‘norma’ derivada, nem ‘norma’ conseqüente do art. 1º do Decreto-lei n.º 2.397/87”; e, (2) “o art. 6, II, da Lei Complementar n.º 70/91 inseriu no sistema normativo enunciado-enunciado diverso daquele originário do art. 1º do Decreto-lei n.º 2.397/87”. Nesse diapasão, “fazer simples referência ao artigo 1º do Decreto-lei n.º 2.397/87, não significa torná-lo dependente”.
Corroborando esses motivos, autenticamente positivistas, calham outros tendentes a considerar que não foi revogada a isenção das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais atinentemente a contribuição para o financiamento da seguridade social: o princípio da segurança jurídica – não no sentido de simples previsibilidade, estabilidade ou padronização –, mas como fundamentação judicial que explicite a compreensão do intérprete frente à situação hermenêutica, num esforço de serem percebidas as repercussões sociais do julgado no contexto – total – onde inserido, mormente depois de dez anos do advento da Lei Federal n.º 9.430/1996.
Decerto, mormente em matéria tributária, não se pode negar efeitos a reiteradas decisões em favor do contribuinte. A norma não se exaure no texto da lei ou da constituição. Sua construção não é simplesmente deduzida. Aliás, pode-se afirmar que a jurisprudência produz o direito na medida em que o aplica, não havendo lugar para a incoerência em relação aos julgados vistos em sua tradição, se não houve modificação do contexto que a autorizasse.
Aliás, o que se expende aqui pode ser sentido em decisões do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, verbi gratia o EIAC 2004.34.00.011887-4/DF, de relatoria do Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral (publicado no DJ 2/2/2006), que, citando o verbete n.º 276, da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, obtemperou que apesar de nenhum membro da corte desconheça a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reiterativa de “que lei ordinária pode alterar disposição que, embora posta em lei complementar, não é de natureza complementar material”, prestigia-se aquele entendimento sumulado, assentando que (1) “se a sociedade presta serviços de profissão regulamentada”, (2) “é composta apenas por sócios de profissão afim ao seu objeto social” e (3) “está inscrita no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas”, forçoso convir que estão preenchidos os requisitos “cumulativos do art. 1º do DL nº 2.397/87” para gozar “da isenção contida no art. 6º, II, da LC nº 70/91, que não poderia ter sido revogada pela Lei nº 9.430/96”.
Em suma, embora não se possa conceber a pretensão de se ter um sentido unívoco quando da construção da norma jurídica do caso concreto – e sem a pretensão de resolver a questão definitivamente –, é plausível assentar que não só os argumentos fundados na fenomenologia existencialista autorizam a concluir pela não revogação da isenção da contribuição para o financiamento da seguridade social em favor das sociedades prestadoras de serviços de profissão regulamentada, mas também motivações de índole procedimentais e positivistas convergem para a subsistência de tal isenção.
BIBLIOGRAFIA
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*Juiz Federal Substituto em Salvador. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Processual Penal, nível de pós-graduação lato sensu, da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte. Ex-Promotor de Justiça do Rio Grande do Norte. Ex-Defensor Público da União.
A divergência sobre a revogação ou não da isenção da contribuição para o financiamento da Seguridade Social (Cofins) em favor das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais regulamentados remanesce no cenário jurídico brasileiro. Passados mais de dez anos do advento da Lei Federal n.º 9.430/1996 – que teria, através de seu artigo 56, revogado o art. 6º, II, da lei Complementar n.º 70/1991 –, assiste-se à renovação do debate, agora, no Supremo Tribunal Federal. Parece longe, ainda, de ser pacificada a “incerteza”.
O problema jurídico surgiu em razão da suposta revogação da isenção, instituída por lei complementar, ter se dado por lei ordinária. As argumentações se desenvolveram levando em consideração o fato de que a Lei Complementar n.º 70/1991 teria disciplinado matéria a ela não reservada, isto é, que poderia ser disposta por lei ordinária. Uma espécie de invasão, por aquela, da esfera de competência do legislador ordinário.
Formaram-se daí duas correntes jurisprudenciais de vertentes distintas. Uma que entendia haver hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, haja vista a própria ordem do art. 59, da Constituição do Brasil, aliada ao fato de que a primeira depende de quorum qualificado de aprovação, enquanto a última é aprovada por maioria simples. A outra posição defende inexistir hierarquia entre leis, já que ambas encontram seu fundamento de validade na Constituição. Lei ordinária, assim, não haure sua validade em lei complementar, porém na Lei Maior.
Importa, para a correta colocação da quaestio, compreender bem os fundamentos da hierarquia dos diplomas normativos pátrios, já que não se pode descurar de que a vinculação da Carta da República “e de suas normas é uma realidade do constitucionalismo contemporâneo” (CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 31). O controle de constitucionalidade dos atos normativos é relevante para assegurar a supremacia da Constituição, mediante a “verificação da compatibilidade vertical das normas”, garantindo, assim, sua rigidez, com “um sistema eficiente de defesa da Constituição, para que ela prevalecesse sempre” (VELOSO, 2003, pp. 17-18).
O pensamento kelseniano permeia o que se entende por hierarquia das normas. Entende-se, por esse prisma, que a norma é válida quando encontra seu fundamento de validade na Constituição. Todavia, “sendo a Constituição a norma de origem do Direito positivo”, indaga-se “em qual norma descansa o fundamento de validade da Constituição positiva” (IVO, 1997, p. 36). E é Hans Kelsen (1997, p. 217) quem responde, dizendo que “o fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem”.
Não obstante a contribuição kelseniana, entende-se que a atividade interpretativa/aplicadora do direito não deve simplificar-se em aferir a compatibilidade vertical das normas sem levar em consideração outros aspectos, inclusive de ordem interdisciplinar. Trata-se da necessidade de tomada de consciência da situação hermenêutica do jurista em sua tradição. Ele deve partir de uma posição prévia, de uma visão prévia e de uma concepção prévia a respeito dos entes, esforçando-se para compreendê-los em seu “ser”. É que “a pirâmide de Kelsen não basta para” exprimir o direito (SIFUENTES, 2005, p. 301). “Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa” (HESSE, 1991, p. 20).
Com Elton Luiz Leite de Souza, propugna-se por um direito rizomático – “rizoma é uma raiz que troca a profundidade do solo pela sua superfície sem fronteiras” – que se caracteriza “pela multiplicidade de perspectivas que ele engendra ao se expandir enraizando-se, também, na sociedade”, diversamente do que pensa o direito positivista, onde “as raízes da árvore jurídica devem estar presas a um único solo: o Estado – e tão somente a este” (2007, pp. 15-16).
Com essas premissas iniciais, cabe examinar os argumentos de cada uma das correntes a respeito de se ter operado revogação ou não da isenção da contribuição para o financiamento da Seguridade Social (Cofins) em favor das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais regulamentados. A primeira entende haver hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. A segunda entende que não há tal hierarquia.
Dessarte, a posição que sustenta não ter se operado revogação tem, inclusive, seu entendimento sumulado no verbete n.º 276, do Superior Tribunal de Justiça, que giza que “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado”. A par desse aspecto, outro argumento em que se escuda essa corrente é na existência de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, razão pela qual, mesmo havendo disciplina de matéria do legislador ordinário pelo complementar, não é possível modificação da lei complementar por veículo normativo de patamar inferior.
Sob esse ponto de vista, como a suposta revogação da isenção estatuída no art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991, pelo art. 56, da Lei Federal n.º 9.430/1996, equivaleria a uma criação de novo tributo em desfavor das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, aquela não seria admissível, por ser vedada a revogação de lei complementar por lei ordinária, mercê da hierarquia existente entre elas.
Por sua vez, a outra linha entende pela validade de revogação de lei complementar por lei ordinária, quando aquela haja, primeiro, invadido a esfera material desta. Desse modo, volvendo-se para o caso da Cofins, em virtude de inexistir reserva de lei complementar em matéria de contribuição social, não haveria impedimento para exigi-la das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, ex vi do art. 56, da Lei Federal n.º 9.430/1996.
Essa doutrina encontra respaldo no normativismo kelseniano e no positivismo, sendo tese, inclusive, sufragada pelo Supremo Tribunal Federal, interessando sublinhar, contudo, que a Suprema Corte, na matéria específica da Cofins, tem se manifestado recentemente, através de seus órgãos fracionários, pendente a apreciação do mérito da lide pelo órgão plenário.
Impende, todavia, mencionar os fundamentos de voto do Min. Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma – RE: 419.629-8/DF – DJ 30/6/2006), que determinou ao Superior Tribunal de Justiça que afastasse a premissa de que lei complementar seria superior à lei ordinária e apreciasse o mérito de recurso sobre a isenção da Cofins, pontificando que “o conflito entre lei complementar e lei ordinária não há de solver-se pelo princípio da hierarquia”, porém se impõe perquirir se a matéria está “ou não reservada ao processo de legislação complementar”, concluindo que não há “violação ao princípio da hierarquia das leis”, isto é, “da reserva constitucional de lei complementar”, cuja observância exige que seja respeitado “o âmbito material reservado às espécies normativas previstas na Constituição Federal”.
Assentados, embora sucintamente, os motivos de cada uma das posições jurisprudenciais, cabe, com Gabriel Ivo (2006, p. 97), concordar que é possível ocorrer a revogação “entre instrumentos introdutores de normas diversos”, já que é a Constituição que “tem a função de fundamentar a validade” de todas as leis indistintamente, estando todas as normas que compõem a unidade do sistema jurídico “ligadas entre si, em relações de coordenação e subordinação”, avivando-se que “são todas elas reconduzíveis ao núcleo originário, que fixa o critério de validade”.
Outrossim, se é certo que “lei complementar pode regular qualquer matéria”, mesmo aquelas a ela não reservada, “o contrário não ocorre”, ou seja, não é colocado óbice a que, no futuro, “aquela matéria propriamente de lei ordinária, mas contida no enunciado-enunciado de uma lei complementar, não possa ser tratada” através de uma lei ordinária. “A lei ordinária não fica paralisada frente à lei complementar nesses casos” (IVO, p. 102).
A disciplina das isenções das contribuições sociais não é reservada à lei complementar. Se essa dispuser, como o fez na hipótese da isenção das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais regulamentados em relação à Cofins, não há impedimento, via de regra, para haver revogação daquela por meio de lei ordinária – que assim disponha expressamente, que tenha matéria incompatível com a anterior ou que regule inteiramente o direito antes disciplinado pela lei complementar –, como aparentemente teria ocorrido por intermédio da edição da Lei Federal n.º 9.430/1996.
Advirta-se, porém, que “isso não significa que as leis complementares não possam ser hierarquicamente superiores às leis ordinárias”, já que, quando se cuidar de lei complementar que regulamente “o modo de elaboração, redação, modificação e consolidação das leis ordinárias” (parágrafo único, do art. 59, da Constituição do Brasil), ocorrerá “hierarquia formal-procedimental” (ÁVILA, 2004, p. 132).
No caso da isenção em tela, nuances outras carecem de ser levadas em conta, rechaçando-se soluções mecânicas, simplistas que, ao cabo, mais dificultam a efetiva resolução dos litígios. O direito não se fecha no normativismo kelseniano. É mister que o jurista avance, aproximando-se de outras disciplinas, como a filosofia, a psicologia jurídica e a sociologia jurídica, num prisma ontológico-fundamental. “A compreensão deve ser entendida como um ato da existência”, porquanto o intérprete é ser-no-mundo, num contexto em seu tempo, devendo ter consciência de que é membro “de uma cadeia ininterrupta graças à qual” é interpelado pelo passado (GADAMER, 2006, pp. 57-58). Esse é o matiz filosófico que não põe fim ao pensamento, atentando para as singularidades do caso concreto, certificando-se, com Lenio Luiz Streck (2004, p. 875) que “a viragem lingüístico-hermenêutica demonstrou que ambas as metafísicas (clássica e moderna) foram derrotadas”.
Na senda de João Batista Gomes Moreira (2005, p. 63), no direito, “a mudança consiste na superação do modelo cartesiano, centrado no pensamento reducionista, causal e mecânico, para fazer predominar o sentido da totalidade”. E, com Martin Heidegger (2005, p. 100), pode-se completar que a relação sujeito-objeto não é suficiente, carecendo atribuir maior ênfase ao sentido de que “conhecer é um modo ontológico do ser-no-mundo”, que está inserto no contexto interpretativo de sua tradição e temporalidade, sempre dotado de pré-compreensão.
É de ver que o princípio da segurança jurídica deve permear a controvérsia ora cuidada. Não simplesmente com base na estabilidade das relações jurídicas, em abstrato, mediante decisões uniformes. Tal forma de pensar não é bastante diante da complexidade da vida (pós-)moderna. Mas, o que importa notadamente, é uma fundamentação segura, que espose a compreensão atenta com a tradição e que saia da cotidianidade, para retirar o cobertor impeditivo da percepção da multiplicidade de problemas que podem advir de julgados que não encontrem respaldo social, no seu contexto humano. Esse proceder, como dito em outro lugar, “confere maior credibilidade à justiça e efetividade do direito material”, merecendo refutação “a aplicação de dogmas repetidos como verdades absolutas” (ALENCAR, 2006, p. 62). A propósito, como aduz Andréas Joachim Krell, sob lente diversa, “o controle de constitucionalidade”, diferentemente de uma postura fechada, automatizada, “sempre vai envolver também uma atitude política do legislador” (2002, p. 95). “A constituição é um dinamismo”, sendo insuficiente a “ideologia estática da interpretação jurídica” (GRAU, 2003, p. 147).
Seguindo o fio condutor da questão a respeito da ocorrência ou não de revogação da contribuição para o financiamento da Seguridade Social alusivamente às sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, outros aspectos interferem para a compreensão adequada da discrepância doutrinária e jurisprudencial. Vale dizer, também o direito material veiculado pela lei complementar supostamente revogada e pela lei ordinária revogadora são relevantes para o desate da disputa.
Deveras, em se tratando de matéria tributária, onde esteja em jogo a validade de uma exação, é razoável exigir que os veículos introdutores de normas supressoras de outras normas deixem um campo de abertura menor. A interpretação/aplicação do direito é inexorável. A uniformidade é um ideal de dificílimo, senão impossível alcance. Contudo, o texto também tem sua função, no plano da expressão. A preocupação de expedição de leis precisas em matéria de revogação, máxime quando seja caso de instituição de tributo mediante revogação, deve ser uma constante. Preferencialmente expressa ou, não sendo possível, que a lei não tenha uma textura que propicie disparate igual a da isenção ora tratada: passados mais de dez anos e depois de sumulada a questão pelo Superior Tribunal de Justiça, busca-se uma nova “verdade” através do entendimento que equivale à instituição de tributo cuja interpretação tem espeque no pensamento positivista.
Para tal desiderato, paradoxalmente, as correntes apontadas esquecem alguns dogmas e ficam com outros, num modo de pensar metafísico, in abstracto, que não enxerga a singularidade da questão. Malgrado adeptos da hermenêutica clássica ou da histórico-evolutiva, não se vê acatamento às lições de Carlos Maximiliano (2006, p. 271), consistentes em que “quando se trata de competência para decretar ônus fiscais, decide-se, na dúvida, pelo poder de tributar” e “quando se interpreta lei de impostos, observa-se o inverso – opina-se, de preferência, a favor do contribuinte e contra o fisco”.
Sob outro enfoque, acresça-se que se é certo que o enunciado da Súmula n.º 276, do Superior Tribuna de Justiça foi editado mormente em face das divergências a respeito do cabimento ou não da isenção diante do regime jurídico adotado pelas sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada (controvérsias decorrentes do apego literal ao revogado art. 1º, do Decreto-lei n.º 2.397/1987, que apontava não incidência de imposto de renda para aquelas pessoas de forma restrita, isto é, a depender do regime escolhido), não menos exato é que esse verbete foi aprovado em 14/5/2003, quando já vigente a Lei Federal n.º 9.430/1996.
Impende perlustrar que, na oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a Lei Federal n.º 9.430/1996 apenas revogou os artigos 1º e 2º, do Decreto-lei n.º 2.397/1987, permanecendo em vigor a norma de isenção do art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991. Não se fez menção, no verbete n.º 276, à suposta hierarquia existente entre lei complementar e lei ordinária, valendo anotar, a propósito, a existência de precedentes que supedanearam a aprovação da aludida Sumula que não fizeram alusão a esse fundamento, verbi gratia, o AgRg n.º 226.386/PR (Min. Eliana Calmon), conquanto não se desconheça outros que se supedanearam na pirâmide kelseniana.
Com essas anotações, tem lugar o pontificado por Tárec Moysés Moussallem (2005), em estudo específico sobre o tema, que, embora entenda inexistente a hierarquia entre lei complementar e lei ordinária – admitindo a possibilidade de revogação válida daquela por esta –, chama a atenção, notadamente, para o fato de que os artigos 56 e 88, XIV, da Lei Federal n.º 9.430/1996, não tiveram o condão de revogar a isenção específica de Cofins, do art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991 (este é norma específica em relação aqueles). Com efeito, há várias formas de se contribuir para a Seguridade Social, sendo a Cofins apenas uma das contribuições dentre as devidas pelo contribuinte àquela.
Concluindo pela não-revogação do art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/1991, Tárec Moysés Moussallem (2005, p. 276) averba duas justificativas para o seu posicionamento: (1) “o art. 6º, II, da Lei Complementar n.º 70/91 não é ‘norma’ dependente, nem ‘norma’ derivada, nem ‘norma’ conseqüente do art. 1º do Decreto-lei n.º 2.397/87”; e, (2) “o art. 6, II, da Lei Complementar n.º 70/91 inseriu no sistema normativo enunciado-enunciado diverso daquele originário do art. 1º do Decreto-lei n.º 2.397/87”. Nesse diapasão, “fazer simples referência ao artigo 1º do Decreto-lei n.º 2.397/87, não significa torná-lo dependente”.
Corroborando esses motivos, autenticamente positivistas, calham outros tendentes a considerar que não foi revogada a isenção das sociedades civis prestadoras de serviços profissionais atinentemente a contribuição para o financiamento da seguridade social: o princípio da segurança jurídica – não no sentido de simples previsibilidade, estabilidade ou padronização –, mas como fundamentação judicial que explicite a compreensão do intérprete frente à situação hermenêutica, num esforço de serem percebidas as repercussões sociais do julgado no contexto – total – onde inserido, mormente depois de dez anos do advento da Lei Federal n.º 9.430/1996.
Decerto, mormente em matéria tributária, não se pode negar efeitos a reiteradas decisões em favor do contribuinte. A norma não se exaure no texto da lei ou da constituição. Sua construção não é simplesmente deduzida. Aliás, pode-se afirmar que a jurisprudência produz o direito na medida em que o aplica, não havendo lugar para a incoerência em relação aos julgados vistos em sua tradição, se não houve modificação do contexto que a autorizasse.
Aliás, o que se expende aqui pode ser sentido em decisões do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, verbi gratia o EIAC 2004.34.00.011887-4/DF, de relatoria do Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral (publicado no DJ 2/2/2006), que, citando o verbete n.º 276, da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, obtemperou que apesar de nenhum membro da corte desconheça a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reiterativa de “que lei ordinária pode alterar disposição que, embora posta em lei complementar, não é de natureza complementar material”, prestigia-se aquele entendimento sumulado, assentando que (1) “se a sociedade presta serviços de profissão regulamentada”, (2) “é composta apenas por sócios de profissão afim ao seu objeto social” e (3) “está inscrita no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas”, forçoso convir que estão preenchidos os requisitos “cumulativos do art. 1º do DL nº 2.397/87” para gozar “da isenção contida no art. 6º, II, da LC nº 70/91, que não poderia ter sido revogada pela Lei nº 9.430/96”.
Em suma, embora não se possa conceber a pretensão de se ter um sentido unívoco quando da construção da norma jurídica do caso concreto – e sem a pretensão de resolver a questão definitivamente –, é plausível assentar que não só os argumentos fundados na fenomenologia existencialista autorizam a concluir pela não revogação da isenção da contribuição para o financiamento da seguridade social em favor das sociedades prestadoras de serviços de profissão regulamentada, mas também motivações de índole procedimentais e positivistas convergem para a subsistência de tal isenção.
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